Preta Gil causou polêmica em 2003, mas quem perdurou foi hit ‘Sinais de Fogo’
Cantora posou nua e foi repreendida por comentários moralistas
O disco “Prêt-a-Porter”, em 2003, estava chamando a atenção na mídia: era Preta Gil que lançando-se como cantora —para surpresa de muitos daqueles que não estavam por dentro da árvore genealógica da família. Antes, Gilberto Gil já havia visto um filho, Pedro, se aventurar no mundo da música (ele era baterista da banda do pai e também tinha uma banda, a Egotrip, quando morreu após acidente de carro, em 1990).
Esse contexto fazia a estreia de Preta suficiente para alcançar os meios de comunicação, mas havia mais: discutiu-se demais como Preta embalou o álbum. A capa toda preta trazia a artista nua, em foto de Vânia Toledo, com uma fita do Senhor do Bonfim sobrepondo-a. No encarte interno, duas folhas registravam-na posando nua. A estreante, então, passou a ser alvo: primeiro da curiosidade jornalística, depois de uma certa troça. Em 2003, o Brasil já era um dos expoentes da cirurgia plástica: metade das intervenções estéticas feitas na clínica mais famosa do país eram estrangeiros que buscavam nossa medicina referência. “Gordofobia” era um termo distante e, dito isso, bastava a informação de que, sendo mulher, ela estaria já como alvo. E, nua, também evocou algum senso de moralidade que nasce como capim quando o assunto é exposição de corpos.
A cantora morreu neste domingo (20). Ela estava tratando um câncer, inicialmente diagnosticado em 2023, nos Estados Unidos.
Hit composto por Ana Carolina era o crème de la crème do pop nos 2000
O disco era puxado pelo single “Sinais de Fogo”, da cantora Ana Carolina (em parceria com o baixista Antonio Villeroy) que, na época, era uma das cantoras mais populares do rádio MPB. Desde que alçou-se com o hit “Garganta”, a cantora passou a ser uma das artistas mais ouvidas em rádios que dedicavam-se ao que se chamava “nova MPB” —subgênero não oficial que nomeou uma rádio com esta alcunha e que ia, genericamente, rotulando cantores populares que continuavam o legado da pós-Tropicália no dial.
Mas, em 2003, Ana também estava se afirmando como uma boa fonte de canções para intérpretes. “Sinais de Fogo” vinha depois de Ana ter sido gravada por Maria Bethânia com “Pra Rua Me Levar” e do sucesso como tradutora e intérprete de “Quem de Nós Dois (La Mia Storia Tra Le Dita)”. Pois o single era o escudo que Preta Gil precisava para enfrentar os leões que estavam rugindo contra.
A faixa rodou pelas rádios de MPB e, por vezes, beslicava programações de rádios mais populares, mas não ficou entre as 100 mais ouvidas de um ano liderado por concorrentes como “Tô Nem Aí”, de Luka, “Velha infância”, dos Tribalistas, “Dois Rios”, do Skank, “Amor maior”, do Jota Quest, “Ligação Urbana”, Bruno e Marrone, “Prá mudar a minha vida”, de Zezé Di Camargo & Luciano, “Mais uma vez”, de Renato Russo ou “Por causa de você”, KLB.
Neste ano, o cenário era de uma tentativa de um pop-rock ainda sendo defendido pela MTV (em setembro, seria lançado o “Acústico MTV: Charlie Brown Jr”, certificado com platina duplo) e de rádios populares vendo o sertanejo chegar às rádios do sudeste (fenômeno que culminaria em um subgênero ainda mais urbano, chamado de “universitário”).
Por isso, “Sinais de Fogo” apontava uma direção oposta a de hits como “Monalisa”, de Jorge Vercilo, e se relacionava mais com sucessos internacionais como os do R&B norte-americano que alternavam-se entre músicas para pista e canções românticas (hits como “Dilemma”, de Nelly e Kelly Rowland, e “Crazy In Love”, de Beyoncé, eram os donos das paradas. Em “Prêt-a-Porter”, Preta cantava por sobre bases de ritmos brasileiros incorporando-os à estética de produção do pop radiofônico brasileiro —caminho que seu pai e outros ouvintes atentos do pop brasileiro sempre fizeram.
‘Baixaria e baianidade’
Se na rádio a canção não teve tanta força para brigar com artistas melhores posicionados nessas interseções, a composição foi sobrevivendo em outros encaixes. Foi, por exemplo, incorporada ao cancioneiro pop que atravessam alguns carnavais pelo Brasil (como o de blocos de música pop do Carnaval de rua do Rio de Janeiro ou o de trio de Salvador) e também virou amuleto no pagode (a canção foi regravada por grupos como Bom Gosto) —além de ser regravada no álbum “Ana e Jorge”, uma coqueluche em 2004 oriunda da parceria entre Ana Carolina e Seu Jorge.
A fórmula foi ideia do pai. “É um disco bem autoral no sentido de ter a cara da galera que eu chamei e acredito como novos talentos na música, na composição, aquela coisa musical do suíngue”, disse Gill, então Ministro da Cultura, à MTV. No time, estavam nomes como Donatinho nos teclados (filho de João Donato e de discografia electro-pop experimental) e Pedro Baby nas guitarras.
O jornalista Bernardo Araujo, em O Globo, estampou o título “Baixaria e baianidade na estreia em CD de Preta Gil”. Na crítica, ele destaca que a cantora tem méritos em buscar repertório inedito em um momento em que, decadente, a indústria mainstream já se escorava em regravações e tributos para poder alavancar venda de catálogo. Após considerá-lo irregular e de letras “verdes”, o texto aponta para uma reflexão sobre a capa. “Por fim, uma pergunta extramusical, mas que precisa ser feita: por que fotos de Preta nua no encarte do CD? A ideia da capa, que já não é boa, torna-se um misto de apelação e mau gosto que, a princípio, só serve para desmoralizar uma artista que poderia, de outra forma, angariar simpatia do público, como vinha fazendo na sua atuação na televisão”.
“Me chamavam mais para entrevistas do que para cantar”, disse a cantora, relembrando que havia mais interesse em saber o que o pai dela achou da capa do disco, do que da música em si.
Para Isabela Yu, em obituário na Folha de São Paulo, a cantora “enfrentou o moralismo da sociedade brasileira, que a repreendia por sua aparência e por seu despudor em relação à bissexualidade e à liberdade feminina. A jornalista destaca resposta de Preta ao jornal: “Nunca pensei que as pessoas pudessem ser conservadores ou julgar os outros pelo modo como vivem ou como são”.








