Tensão e ‘conversas mornas’: por que o Queen quase ignorou o Live Aid
Organizado analisa o vai e vem que antecedeu o show lendário da banda
O show eletrizante do Queen no Live Aid, há 40 anos, no Estádio de Wembley, em Londres, tornou-se talvez a apresentação mais lembrada da época — em grande parte graças ao seu papel principal no filme biográfico de sucesso de 2018, “Bohemian Rhapsody”.
Mas fazer essa apresentação acontecer foi um drama épico por si só.
No novo documentário “Live Aid: When Rock ‘n’ Roll Took on the World”, com estreia no domingo (13) na CNN e na BBC, o promotor britânico do Live Aid, Harvey Goldsmith, diz: “Não consegui pensar em uma banda melhor para dar um toque especial ao show do que ter o Queen, não como uma das atrações de encerramento, mas naquele período mais calmo (início da noite)”.
Mas ele acrescenta que o organizador Bob Geldof “tinha essa coisa de não tê-los no ar”, o que é ecoado pelo baterista do Queen, Roger Taylor. “Bob veio de uma explosão pós-punk”, explica Taylor, “então ele tinha pretensões de ser um pouco punk, eu acho. Ele provavelmente pensou que éramos meio dinossauros”.
A resposta de Geldof? Sim… e não.
“Olha, se você quer uma única razão para o punk existir, uma única palavra — Queen, ok?”, diz o vocalista do Boomtown Rats — que agora chama Taylor de “sério, sem showbiz, uma grande amiga” — à Billboard via Zoom.
“Me poupe dessa merda de: ‘Ei, usamos o estúdio como instrumento’. Ah, cai fora! Essas damas da pantomima desfilando por aí… Minha geração chegou com aquele ânimo de raiva e a crença sincera de que o mundo não é imutável, que as coisas podem mudar e que você pode ser um instrumento dessa mudança. A primeira frase que você ouve (do Boomtown Rats em ‘Lookin’ After No. 1′, de 1977) é: ‘O mundo me deve a vida’. Viemos com essa atitude, e o rock ‘n’ roll parecia não ser mais sobre nada realista. Não se tratava das condições econômicas ou sociais que queríamos mudar, e (o Queen) era emblemático disso com essas canções operísticas. Agora, como estou na minha velhice, talvez eu consiga aceitar que eles escreveram algumas canções pop geniais.”
Apesar de seus sentimentos na época, Geldof afirma que, ao planejar o Live Aid, “não era que eu fosse contra o Queen. Eu não me importava. Eu dizia: ‘Por que, Harve, você insiste tanto nisso?’ E a verdade é que ele queria fazer a próxima turnê europeia deles. Então ele disse: ‘Ligue para eles’. Eu disse: ‘Ligue para eles, porra! Eu não conheço o Queen. Não tenho interesse algum.'”
Geldof cedeu, no entanto, e fez sua primeira pergunta ao tecladista Spike Edney, que havia trabalhado com os Rats e estava em turnê com o Queen pela Austrália e Nova Zelândia.
“Ele disse: ‘Eles não estão em um bom momento. Estamos todos exaustos. A turnê não foi ótima. Eles não têm certeza do que vão fazer… Pode ser o fim do jogo”, lembra Geldof.
Os membros do Queen reconheceram que foi de fato um momento difícil para a banda, que ainda estava sendo criticada por tocar em Sun City, na África do Sul, em outubro do ano anterior, desafiando o boicote cultural das Nações Unidas contra o apartheid. Além disso, as relações internas da banda estavam tensas, já que o vocalista Freddie Mercury se preparava para gravar um álbum solo.
Edney transmitiu a mensagem, no entanto, e o Queen perguntou por que Geldof não havia perguntado diretamente.
“Então falei com o Roger, que não era muito amigo na época, mas eu o conhecia, porque ele costumava frequentar os clubes punk. Ele disse: ‘Bob, olha, nós amamos o que você faz, mas não é a nossa cara, né?’. Estávamos falando da banda que tocou na África do Sul antes de tomarem Kool-Aid e saírem com o Nelson (Mandela). Então (Taylor) disse: ‘Não é a nossa praia, e estamos cansados e o Fred…’. Eu disse: ‘Eu sei, ele pode fazer um álbum solo.’ (Taylor) disse: ‘Você vai ter que falar com ele.’ Eu disse: ‘Você pode pedir para o Fred me ligar?’. Ele disse: ‘Vou tentar.’ Aí o Jim Beach (empresário do Queen) ligou. Eu pensei: ‘Ah, não’. O Jim é um cavalheiro inglês adorável, mas ele é hardcore. E ele disse: ‘Ah, nós amamos o que você faz, Bob, mas não é a nossa praia, né? E você conhece o Fred…’ Eu disse: “Pergunte ao Fred”. Então, alguns dias se passaram e o telefone tocou: “Bobsy!”. Eu disse: “Oi, Freddie”; eu não o conhecia bem, mas tinha ido a uma festa na casa dele. Ele disse: “Ah, querido, adoramos o que você está fazendo. É fabuloso, mas não é realmente a nossa praia, é?”. Eu disse: “Bem, é a praia de alguém? É algo que todos nós podemos fazer”, e ele respondeu: “Ah, sim… mas talvez eu esteja fazendo meu próprio disco, e…”. Naquele momento, pensei que, se eles não quisessem fazer isso, eu voltaria para o Harvey e diria: “Eles não queriam fazer isso, Harvey. O que posso te dizer?”.
Por algum motivo, terminei essa conversa morna (com Mercury) e simplesmente disse: ‘Bem, olha, Fred, se alguma vez houve um palco construído para você, foi este.’ E ele disse: ‘Bem, o que você quer dizer?’ E eu disse: ‘Bem, querida — o mundo.’ E houve uma pausa e Freddie disse: ‘Acho que sei de onde você vem.’ No minuto seguinte, eles aparecem no Live Aid e são mais que geniais.
Não há como negar isso. Situado entre o Dire Straits e David Bowie, o Queen apresentou um medley ininterrupto — criado durante três dias de ensaios intensos no Shaw Theatre, no norte de Londres — que começou com a parte de abertura de “Bohemian Rhapsody” e depois passou para “Radio Ga Ga”, com seu famoso aplauso de plateia inteira e o canto de “ay-ho” de Mercury, com perguntas e respostas, para a plateia.
“Hammer to Fall”, “Crazy Little Thing Called Love”, “We Will Rock You” e “We Are the Champions” encerraram o show com chave de ouro, deixando fãs e colegas boquiabertos e aplaudindo. Em seu livro de memórias, Who I Am, Pete Townshend, cujo Who reunido se apresentou dois shows depois, reconheceu que o Queen “roubou a cena”.
“(Geldof) descreveu o Queen para nós como uma ‘jukebox global'”, explicou Taylor posteriormente. “Então, juntamos alguns sucessos, as músicas que achávamos que todo mundo conheceria e amaria, e as juntamos. Foi bom. Acho que atingiu o tom certo.”
Para Geldof, depois de tantos anos, quaisquer reservas em relação ao Queen já ficaram para trás. “Incrível, só isso. Simplesmente fantástico”, diz ele. “Você acabou de ouvir a história dessa banda fantástica, essa banda louca e improvável fazendo músicas loucas e improváveis… e todo mundo adorou. E ainda adora.”