É cor-de-rosa choque: como artistas LGBTQIA+ desenharam música atual
Livro do jornalista Jon Savage fala de influência de David Bowie e mais


Richard Wayne Penniman era um cantor e pianista de Macon, no estado americano da Geórgia (que ainda trabalhava como lavador de pratos num restaurante para equilibrar as contas) quando, no dia 28 de outubro de 1955, lançou o compacto de “Tutti Frutti”.
Precedido pelo grito onomatopaico de “Wop bop a loo bop a lop bom bom”, o single de Little Richard (1932-2020), nome artístico adotado pelo rapaz, foi esnobado pelas revistas especializadas em música daquele período, mas caiu nas graças dos jovens –vendeu 200 mil cópias em menos de um mês e ganhou até uma versão branda, cantada por Pat Boone.
A letra do single, contudo, trazia elementos que passaram despercebidos para seus apreciadores e detratores de primeira hora. “Tutti Frutti” (ou “todos os frutos”, em português) é uma canção homossexual, visto que “fruta” era a maneira como os membros da comunidade gay americana se tratavam nos anos 1950.
A história por trás do grande sucesso do pai do rock’n’roll é uma entre tantos momentos reveladores de “The Secret Public: How LGBTQ Performers Shaped Popular Culture”, do escritor e jornalista inglês Jon Savage –e que, infelizmente, ainda não foi lançado no Brasil.
“Ele nasceu de conversas com amigos sobre quais astros eram gays ou não, e como eles são importantes para a história da música. É, essencialmente, uma obra raivosa: foi escrita com raiva porque vivemos numa sociedade que diz que o gay não vale nada”, diz Savage, em entrevista à Billboard Brasil.
Nem todos os astros retratados, no entanto, eram gays. “Elvis Presley (1935-1977) era hétero, mas apresentava um tipo de masculinidade diferente e atraente para esse novo mercado adolescente que estava emergindo em meados dos anos 1950.” Especialista do universo pop –escreveu, por exemplo, obras sobre o movimento punk e a criação do conceito de juventude–, Savage é gay assumido.
Contou para a família sobre sua homossexualidade tão logo assistiu a uma entrevista do cantor David Bowie (1947-2016) declarando “sou e sempre serei gay” para a revista inglesa “Melody Maker”. “Foi uma declaração muito corajosa, provocativa e calculada, mas também sincera. Bowie causou impacto na juventude daquele período por causa de sua atitude, mas principalmente porque a música era fantástica”, diz Savage.

“Ele difere, por exemplo, de um Jobriath, que sempre foi um personagem”, explica o jornalista, referindo-se ao popstar americano dos anos 1970 que era mais espalhafatoso do que talentoso. “The Secret Public” traz exemplos da luta contra o preconceito e as inovações que os personagens trouxeram para o universo pop.
Em meio a vitórias, há passagens marcadas pela incompreensão: a cantora Dusty Springfield (1939-1999), cuja carreira despencou depois que ela assumiu ser gay, ou de Johnnie Ray (1927-1990) e Tab Hunter (1931-2018), um cantor e, outro, ator, que tiveram suas trajetórias interrompidas depois de ter sua intimidade divulgada por tabloides na década de 1950.
O produtor Joe Meek (1929-1967) e o empresário dos Beatles, Brian Epstein (1934-1967), foram outros dois personagens trágicos nesse universo –a parede da casa de Savage, aliás, é decorada com um retrato icônico de Epstein. Nunca puderam “sair do armário”, visto que até 1967 a homossexualidade era considerada crime no Reino Unido.
O jornalista pontua esses momentos dolorosos, mas celebra também grandes vitórias da comunidade LGBTQIA+. Caso de Sylvester (1947-1988), um dos nomes mais notáveis da era disco. “É simbólico eu começar o livro com Little Richard e terminar com Sylvester porque são dois símbolos muito fortes na luta contra o preconceito sexual e racial”, comenta Savage.
“Duas forças da América negra.” “Nos Estados Unidos, sempre houve mais preconceito em relação aos gays do que no Reino Unido”, prossegue. “Mas acho engraçado que demoraram a perceber que Freddie Mercury era gay. Afinal, a banda se chamava Queen [Rainha]”, diverte-se. De fato, o grupo só perdeu a popularidade nos rincões americanos quando soltou o single “Body Language”, de 1981 –junto com um clipe que não deixava dúvida sobre a preferência de Freddie.
A ascensão de David Bowie é um momento crucial não apenas para a música, mas também para o comportamento dos jovens ingleses dos anos 1970. Foi o primeiro artista a declarar que era gay, acompanhado por inovações sonoras que até hoje reverberam na indústria –a criação de novas personas, a assimilação de diferentes estilos musicais… “Boy George foi influenciado por Bowie em todos os sentidos”, diz Savage.
“Sabe o que é mais curioso? Eu tenho amigos que pararam de escutar Bowie quando ele desenvolveu seu lado hétero, no início dos anos 1980. Mas eu continuo a escutar a obra dele. Afinal, é um músico, não um político.” Falando do lado de cá, sempre foi muito raro para um artista sair abertamente do armário ou assumir sua militância. Johnny Alf (1929-2010), por exemplo, sempre fez a linha discreta. No máximo, mandou pistas nas letras. “Você bem sabe eu sou rapaz de bem/A minha onda é a do vai e vem/ Pois com as pessoas que eu bem tratar/ Eu qualquer dia posso me arrumar”, decreta, em “Rapaz de Bem”.
Grupos como Secos & Molhados (do qual saiu Ney Matogrosso) e uma legião infindável de intérpretes do sexo feminino sempre foram mais reservadas para falar de suas condições sexuais.
O rock’n’roll dos anos 1980 foi o que escancarou essa porta, por meio de Renato Russo (1960-1996) e Cazuza (1958-1990). Coube à geração de Pabllo Vittar, Gloria Groove e Liniker dar o protagonismo necessário para a comunidade LGBTQIA+ nacional. Que venha agora um “Secret Public” brasileiro.
[Esta entrevista foi publicada na 13ª edição da Billboard Brasil. Adquira sua revista aqui.]