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Toda indústria musical cabe num chapéu

Toda indústria musical cabe num chapéu

Felipe Vassão (divulgação)

Eu nunca respeitei tanto as pessoas que fazem música na rua como hoje em dia. Aquelas pessoas que encaram ficar horas em pé numa calçada tocando e cantando, ou então entram no vagão do metrô e dão um micro-show pros passageiros.

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A barganha é simples e direta: “Eu te entrego música e você me dá algo, se gostar”. Pode ser dinheiro vivo, pode ser um stories, um novo seguidor, uma moeda, um pix.

Se não encantar, não ganha nada.

Elas se arriscam.

Não tem como se esconder atrás de uma capa de disco, de uma entrevista de rádio, da quantidade de plays no streaming: elas estão ali entregando tudo o que têm.

Porque confiam no que fazem.

Pra muita gente, artista de rua tá mais próximo de um pedinte do que um astro. Se expondo por trocados numa situação precária de trabalho.

Pra mim não: são o exemplo máximo da coragem que tem que ter pra encarar a arte como forma de viver.

Não tô falando de “sustento”: tô falando de vida, de vontade, da necessidade de se conectar. Se auto-expressar.

Na realidade essas pessoas representam o porquê de existir o mercado da música: fazer uma expressão artística chegar a quem quer experimentá-la.

A pessoa se expõe e deixa o chapéu ali pra receber o que o ouvinte – agora um fã – tiver pra dar em troca.

Simbolicamente TODA a indústria da música é aquele “chapéu”: um intermediário, um veículo para valorização, uma forma de monetizar.

Com exceção do artista e do fã – as duas partes mais importantes da equação — todos que trabalham nessa indústria são alguma manifestação desse “chapéu”, alguma derivação dessa função.

Toda essa analogia serve para questionar: quando foi que o chapéu ficou mais importante que as duas pontas que ele conecta?

O que aconteceu?

Vejo muita gente criando música pra aplacar o algoritmo, se encaixar na trend, surfar uma onda.

Óbvio que existe a necessidade de pagar boleto — Fazer “arte pela arte” no Brasil é coisa de herdeiro.

Mas a lógica tá invertida: “Faça música da forma mais ‘marketável’ que dá certo.”

As grandes gravadoras da época de ouro — dos anos 60 a anos 80 — se viravam pra inventar um jeito de comercializar seus artistas.

Frank Zappa se referia à galera de gravadora dessa época como os “I Don’t Know Guys”: uns maluco que aceitavam qualquer parada e, sem saber exatamente o que tavam fazendo, iam lá e arriscavam.

“Sei lá se vai dar certo”.

Lançaram muita coisa que nunca se pagou na ponta do lápis, mas que construiu legado e semeou o solo inspirando novas gerações.

Medalhões da MPB, que hoje lotam estádios com seu legado, só deram lucro no 5º ou 7º álbum.

Secos & Molhados pagaram muita conta que não fechava na Continental, incluindo o hoje lendário e internacionalmente sampleado Arthur Verocai.

O motor da indústria era a criatividade, a experimentação e o risco. Claro que ninguém reclamava quando alguma dessas loucuras fazia sucesso. Mas o sucesso era consequência de coisas únicas.

E nem tudo precisava ser um sucesso: mas precisava ser mostrado.

São inúmeras histórias curiosas de sucessos que estavam fora dos padrões. De “Bohemian Rhapsody” e “Faroeste Caboclo”, que extrapolavam a duração aceitável de uma música comercial, a “Never Gonna Let You Go” do Sérgio Mendes que tem mais mudanças de tom que jazz experimental, e mesmo assim flui como um clássico do pop mela cueca anos 70.

E apesar de termos exemplos e mais exemplos de “maluquices” que fizeram sucesso, o mercado se aglutinou hoje numa máquina de repetir fórmulas seguras.

Supostamente seguras.

O chapéu virou um moedor de carne, padronizando tudo numa papinha mais aceitável.

Pra mim um dos exemplos mais gritantes é o streaming — mais especificamente o Spotify.

O que deveria ser um veículo para conectar artistas e fãs — literalmente a função do chapéu — virou um caça níqueis infectado por fraude de ouvintes falsos (os famosos bots), músicas “fantasma” pra encher linguiça e playlists duvidosas (o infame PFC  — Perfect Fit Content) e agora um tsunami de fonogramas gerados por IA que só diluem o pouco dinheiro disponível para as pessoas que REALMENTE criam o produto.

Aliás 70% dos “ouvintes” de música gerada por IA são bots: robôs fazendo música pra outros robôs ouvirem, e abocanharem uma grana da monetização supostamente destinada às pessoas que fazem arte.

“Ah, mas quem escreve o prompt de uma IA generativa também tá criando, só que com outras ferramentas.”

Sim, a ferramenta no caso é um sistema de recombinação de obviedades treinada com músicas sem permissão pra essa finalidade. Alguns classificam como o maior roubo da história da arte.

E não adianta tentar comparar com a forma como artistas humanos criam — recombinando referências pré-existentes — pois o processo criativo humano é muito mais complexo do que uma operação computacional.

Também não vale a premissa de que não temos licença pra usar o nosso “material de treinamento”, já que ouvimos música no rádio, internet etc: eu paguei pelos meus discos, e toda vez que ouvimos algo numa mídia aberta estamos pagando esse acesso, seja o acesso em si, seja expostos a anúncios.

No final a gente tá vendo uma indústria de ponta cabeça, de valores invertidos, onde o artista tem que se adaptar à uberização da distribuição musical, e dar resultado imediato.

O gozado de tudo isso é que o Spotify passou ONZE ANOS no vermelho, sendo “desenvolvido”, sem resultado efetivo nenhum.

Emicida recentemente disse que não quer fazer “hits”, mas fazer “clássicos”.

Pergunte pra qualquer artista que você admira e a resposta vai ser quase unânime: artistas amam o processo, não necessariamente o resultado.

O FAZER é o motor criativo.

E é por isso que eu respeito quem vai pra rua, mostra a cara e se banca na frente da galera. Seja um sucesso ou um fracasso, tá lá na calçada se transbordando pro ouvinte. 

Se encantar, ganha um fã.


Felipe Vassão — Produtor Musical e Criador de Conteúdo há mais de 30 anos na música.

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