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Sábado de Aleluia: Seu Mateus lança ‘Baía Profunda’ em celebração afro

Sábado de Aleluia: Seu Mateus lança ‘Baía Profunda’ em celebração afro

Show do cantor e compositor baiano celebra a ancestralidade africana

Os orixás da Bahia amam música. E, aparentemente, são simpáticos ao time que leva o nome do estado. No sábado passado, dia 08 de novembro, durante a apresentação de Mateus Aleluia e a Orquestra Afro-Sinfônica do maestro Ubiratan Marques na Concha Acústica do Teatro Castro Alves (em Salvador, claro), um espectador tinha os olhos pregados no palco e no telefone celular. Ele acompanhava, apreensivo, a derrota do Esporte Clube Bahia para o Internacional de Porto Alegre. Simultaneamente ao desespero do torcedor, Mateus, entidade acima de qualquer disputa esportiva, apresentava o repertório de seu novo show, “Baía Profunda”.

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O espetáculo é um sonho que Seu Mateus, ex-integrante dos Tincoãs (trio vocal dos anos 1970 que combinava, com uma maestria absurda, samba de roda, spiritual americanos e cantos afro-brasileiros), acalenta desde 2003, período no qual retornou ao Brasil depois de vinte anos morando em Angola, cidade africana na qual ele aprimorou seus estudos sobre ancestralidade pan africana. “Baía profunda não é a Bahia com h, Bahia estado que foi designada pelos homens. É a de Todos os Santos, que reforça a confluência de vários povos na criação de um ambiente de encontro, produção, pensamento e produções artísticas”, declarou ele na entrevista realizada no Espaço Cultural da Barroquinha, em Salvador, onde anunciou o projeto. “Uma terra que um dia tinha habitantes e que depois esses habitantes se encontraram com habitantes de outras latitudes, e isso se transformou em quê? Numa confluência de pessoas de vários pontos do mundo”, conclui.

“Baía Profunda” é um projeto ambicioso, urgente e necessário. A performance de Mateus e da Afro-Sinfônica, por exemplo, foi precedida por debates de líderes políticos e religiosos, pertencentes à diversas etnias. A partir desse encontro –e, claro, do concerto realizado no dia 08 de novembro– o projeto deverá se estender ao longo de 2026 para praças nacionais e internacionais. Nesse caso, o que foi visto, ouvido e, acima de tudo, sentido na Concha Acústica é alimento para almas sedentas de música e espiritualidade. É, acima de tudo, a consagração tardia de Mateus Aleluia Lima, este senhor de porte altivo e voz de barítono, nascido 83 anos atrás em Cachoeira, município do Recôncavo Baiano. Situada a 120 quilômetros de distância da capital Salvador, Cachoeira é monumento nacional por sua riqueza arquitetônica. É ainda a sede da Irmandade da Boa Morte, confraria afro-religiosa brasileira, formada inicialmente por mulheres pretas libertas, que arrecadavam fundos para comprar a alforria dos escravos. A congregação organiza uma pequena celebração, que ocorre todo mês de agosto, na qual são celebradas a ancestralidade, a fé e a libertação dos escravos. E ali, as procissões e as missas se casam com o samba de roda e a capoeira.

Seu Mateus é produto desse ebó cultural e foi peça importante na mudança de rumo musical dos Tincoãs, grupo nascido também em Cachoeira no final dos anos 1960. Erivaldo, Heraldo e Dadinho, a princípio, eram focados em gêneros como bolero. A partir da substituição de Erivaldo por Mateus, em 1963, o trio passou a trabalhar os elementos do samba de roda e dos cantos afro-brasileiros. “Os Tincoãs”, seu disco de estreia –e que recentemente foi lançado pela Universal Music em seu Clube do Vinil– é uma pequena obra-prima do gênero, repleto de músicas poderosas como “Deixa a Gira Girar”, celebrações a orixás como Ogum (“Ogundê”) e sambas de roda (“Embola Embola”).

Os Tincoãs migraram da Bahia para o Rio nos anos 1970 e tiveram de enfrentar baixas na formação. Heraldo morreu em 1975 e foi substituído por Morais e depois por Badu –que era carioca mas foi obrigado por Adelzon Alves, produtor do trio, a dar um tempo na carioquice. “Eu até passei a dizer nas entrevistas que era baiano”, disse o cantor, em entrevista a esse repórter anos atrás. Função que cumpriu com esmero e talento. Badu é um dos intérpretes da gravação de “Cordeiro de Nanã”, clássico do repertório dos Tincoãs. O conjunto, no entanto, se desfez em 1983, quando Mateus e Dadinho foram morar em Angola e Badu preferiu ficar no Brasil. “Aleluia, por seu turno, assumiu um cargo no governo local.  “Minha missão era identificar a influência brasileira na cultura angolana e pesquisar sobre candomblé e quimbanda”, disse.

Durante a temporada angolana a dupla lançou, em 1986, o disco “Mateus e Dadinho”. O parceiro de Mateus, contudo, se foi em 2000. Três anos depois, seu Mateus desembarcou em Salvador, disposto a recomeçar a sua carreira. Aliás, um dos momentos mais emocionantes de “Baía Fantástica”, o concerto, foi em que Mateus demonstrou gratidão às pessoas que reconduziram ao merecido posto de griot do cancioneiro afro-baiano: Carlinhos Brown, que o chamou seu Mateus para completar “Maimbê Dandá” (gravada por Daniela Mercury no disco “Carnaval Eletrônico”, de 2004); Margareth Menezes, que também o apoiou na retomada da carreira, e Ubiratan Marques, regente e cérebro da Afro-Sinfônica. “A orquestra deve seu nascimento ao Seu Mateus, ela foi criada a partir das gravações de ‘Cinco Sentidos’”, diz Marques, referindo-se ao disco que o cantor e compositor soltou em 2010.

Bahia, o time, sofre com os ataques do Internacional de Porto Alegre quando a Orquestra Afro Sinfônica sobe ao palco da Concha Acústica. Mas quem liga para futebol nesse momento (somente o torcedor que insiste em gritar os “oohs” e “aahs” de uma partida dolorosa de futebol)? “Hino do Baía Profunda”, regida por Ubiratan Marques, é um casamento do universo das músicas da Europa e da África, com direito a um coro apaixonado e um ataque de contrabaixos dignos das obras do alemão Ludwig von Beethoven (1770-1827). Tem tom solene, triunfal e espiritual que antecede a entrada de Mateus Aleluia no palco. “Ciranda dos Meninos” marca o início de uma apresentação memorável, na qual o cantor revisita o repertório de seus discos solo –entre eles “Fogueira Doce”, de 2017, e “Olorum”, de 2020, que constituem na espinha dorsal do repertório da apresentação.

Ubiratan Marques e Orquestra Afro-Sinfônica (Fernando Naiberg/ Divulgação)

O bailarino Negrizu entra em cena durante a canção “Eu Vi Obatalá” e um atacante do time do Bahia acaba de carimbar as duas traves do gol de Internacional. Azar do torcedor, porque os movimentos de  Negrizu são mais graciosos do que qualquer praticamente do ludopédio. “Quem Guiou a Cega?”, por seu turno, é sucedida pelo relato de Seu Mateus a respeito de Cosme de Faria (1875-1972), o rábula baiano, defensor dos pobres, e cuja defesa apaixonada de um sujeito numa acusação falta de estupro inspirou a criação da canção.

Seu Mateus desfila o roteiro de “Baía Profunda” como se estivesse praticando missa para um público devoto e entregue –que se agiganta nos versos de “Fogueira Doce” e emociona a todos no coro de “Deixa a Gira Girar” e “Cordeiro de Nanã”. Esta última, aliás, traz para o palco Carlinhos Brown e Margareth Menezes. Em respeito à ancestralidade presente, eles se contentam em fazer coro, como se estivessem numa oração. “Maracatu do Congo”, do repertório da Orquestra Afro-Sinfônica, fecha a tampa da apresentação. Ah, sim. O Bahia empatou a partida. Obatalá estava tão feliz que perdoou até o infiel que trocou este show histórico por uma partida sem maiores atrativos.

Mateus Aleluia, Margareth Menezes e Carlinhos Brown (Fernando Naiberg/Divulgação)

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