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OPINIÃO: Samba e Rap resistem e criam aquilombamento em São Paulo

OPINIÃO: Samba e Rap resistem e criam aquilombamento em São Paulo

Eventos como A Domingueira e Tardezinha provam relevância cultura dos gêneros

Jorge Aragão

Se nos anos 1910 e 1920 rodas de samba eram formadas religiosamente aos fins de semana como forma de respiro para a rotina de pessoas negras, A Domingueira nasceu com este mesmo propósito, mantendo vivo esse movimento. Unindo samba e outros gêneros da diversa cultura brasileira, o projeto entrega experiência e acolhimento pensada com carinho para mais de 3 mil pessoas a cada edição, onde a comunidade negra se entretém ao som de Xande de Pilares, Alcione, Jorge Aragão, Péricles, e muitos outros artistas que já passaram por ali. Quase em tom de oração, a coletividade se encontra nesse espaço e renova uma prática popular que não é de hoje.

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O que começou no século passado se manteve presente ao longo do tempo. Durante as décadas de 1990 e 2000, o samba, o pagode e o rap compartilharam o topo das paradas musicais. Foi a era de ouro de ambos os gêneros, com músicas que falavam de amor, resistência da população negra e, claro, com muita batida e palma da mão. Vivia-se entre a rebeldia contra o sistema ao som de Racionais MC’s e os domingos de churrasco embalados por Negritude Jr. e Grupo Sensação.

Mas desde 2020, o sertanejo é o gênero musical mais ouvido no Brasil e em estados como São Paulo, por exemplo, o funk ocupa o primeiro lugar nesse pódio. Ainda assim, o modão, a sofrência e as letras embaladas por corações partidos seguem presentes na vida — e nos ouvidos — do povo brasileiro. Mas, entre playlists em plataformas de streaming e trends virais, a pergunta persiste: como o samba e o rap ainda se mantêm relevantes e presentes na cultura brasileira?

A união entre esses dois gêneros sempre trouxe consciência, mas também alívio, principalmente para a população negra. Mais do que isso, cada um desses gêneros ajudou a pavimentar caminhos para que o outro ocupasse espaços de protagonismo, consolidando-se como ferramentas de superação, resistência e expressão artística.

Para além das rodas de samba: um mercado em movimento

Historicamente, o samba foi um espaço de resistência. No chão de terra, sem microfone, apenas com instrumentos e palma da mão, o samba surgiu como forma de expressão para quem, até então, tinha sua liberdade negada por estruturas limitantes.

A partir dos anos 1950, durante o início da Era Vargas, com a ampliação dos meios de comunicação, ocorre também uma ressignificação da imagem do “malandro”, transformando-o em símbolo nacional positivo e, com isso, o samba passa a ser reconhecido como parte da identidade brasileira. A ascensão do gênero (seguido pelo pagode) como parte da indústria do entretenimento foi fundamental para a construção da imagem do Brasil no exterior.

Grupos de pagode nos programas de TV de domingo, sambas nas trilhas sonoras de novelas, artistas negros nos holofotes: um novo mercado se formava em torno de uma cultura que, até pouco tempo antes, era marginalizada e criminalizado.

Esse movimento segue até hoje, mas com uma nova consciência: o capital precisa girar nas mãos de quem produz cultura. Foi com esse olhar que, em 2022, Juliano Silva e Adeilson Pereira criaram a Domingueira. A ideia surgiu após retornarem de um evento de samba que, apesar do sucesso, deixava a desejar em estrutura, conforto e entrega ao público. A partir desse incômodo, nasceu a vontade de oferecer um espaço com estrutura de excelência, sem abrir mão da valorização do samba no circuito cultural de São Paulo.

A Domingueira rapidamente se tornou referência em eventos de cultura negra na cidade. E o movimento não parou por aí: em 2025 nasceu a Casa Blanca Fest, que, seguindo a tradição da história negra brasileira, une rap e samba no mesmo palco. Assim como a Domingueira, seu propósito é oferecer um espaço acolhedor, onde essa fusão musical possa acontecer com dignidade.

De Domingueira a Tardezinha: a missão permanece

O samba representa um dos primeiros momentos em que a arte se torna caminho possível de escolha para a comunidade afro-brasileira. Em tempos em que viver formalmente era negado às pessoas negras, especialmente no contexto da industrialização do Brasil e da exclusão do mercado de trabalho formal, o samba se consolidou como forma legítima de existência.

Reconhecendo a relevância de gêneros como o samba, o pagode e o rap, a indústria cultural passou a se apropriar dessas expressões, entendendo seu potencial econômico. Ainda assim, os gêneros permanecem parte direta da vida e vivência de seus criadores originais. O que se forma, então, é um processo de aquilombamento contemporâneo, onde o protagonismo negro é reafirmado e protegido.

Eventos como a A Domingueira, Casa Blanca Fest, Tardezinha e Numanice são exemplos claros desse movimento. Sejam impulsionados por grandes artistas ou de forma independente, todos têm em comum o compromisso com o fomento à cultura negra, mantendo vivos o samba, o pagode e o rap como elementos centrais da identidade afro-brasileira.

A Domingueira e Casa Blanca Fest provam, em números e em impacto cultural, que tanto o samba quanto o rap seguem relevantes — dentro e fora da indústria do entretenimento. Mas mais do que isso, seguem trilhando um caminho aberto décadas atrás, onde a arte, antes instrumento de sobrevivência, hoje se consolida como escolha consciente e legítima.

*Pryscila Galvão, fundadora RPretas e pesquisadora cultural

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