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A história de ‘Festa do Interior’: do atentado do Riocentro ao São João

A história de ‘Festa do Interior’: do atentado do Riocentro ao São João

Ruy Godinho explica 'Festa do Interior' (Divulgação/Márcio Almeida/ Julia Rodrigues)

No início dos promissores anos de 1980, governo brasileiro demonstrava hesitação ao tentar viabilizar a abertura política sugerida pelo general João Batista Figueiredo, mesmo depois de duas décadas com o país vivendo os horrores da ditadura militar.

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Dominguinhos e Gilberto Gil (Reprodução/Tribuna da Internet)

Uma fissura nessa lentidão aconteceu no dia 30 de abril de 1981. Era uma quinta-feira, às 21h30. 

Neste dia, uma bomba explodiu no estacionamento do Centro de Convenções Riocentro dentro de um automóvel Puma. No carro estavam dois agentes do DOI-CODI, a polícia política do exército.

O artefato estava no colo de um sargento, que morreu. Ele estava acompanhado de um capitão, que foi gravemente  ferido. 

Lá dentro no estacionamento do Centro de Convenções Riocentro estava acontecendo um grande show em comemoração ao Dia do Trabalho, promovido pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade) – entidade ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) – com a participação de diversos artistas e a presença de um público estimado em 20 mil pessoas.

Nessa hora, sintomaticamente quem cantava era outra explosão, esta de alegria: Elba Ramalho.

A bomba que pulverizou as pernas e as partes íntimas do sargento tinha destino certo. Seria instalada junto à plateia. Providencialmente, explodiu antes da hora, no colo do terrorista, um “especialista” em explosivos.

O atentado foi cometido por militares “linha-dura”, na tentativa tresloucada de conter o processo de abertura política comandado pelo general conhecido por sua arrogância e autenticidade, que dizia gostar mais do cheiro de cavalo do que do povo.

Se os meliantes tivessem logrado êxito, teria ocorrido uma tragédia, com consequências imensuráveis. Na época, eram comuns os atentados à bomba em entidades do movimento social, nas casas de políticos oposicionistas e nas bancas de revistas que vendiam publicações consideradas subversivas.

Foi nesse clima conturbado e doentio que, paradoxalmente, nasceu uma das canções que mais desencadeiam a alegria nas multidões: “Festa do Interior”, da parceria do baiano Moraes Moreira com o poeta fluminense Abel Silva.

Conheça a inspiração de “Festa do Interior”

Abel Silva conta com suas palavras o momento histórico que estava vivendo o Brasil que acabou inspirando a letra de “Festa do Interior”.

— Estava acontecendo uma onda de bombas e de explosões nas bancas de jornal. A direita estava completamente enlouquecida. Além de torturar, um bando da Marinha, do Exército e da Aeronáutica começou a agir por conta própria. O famoso terrorismo de direita, quando as próprias Forças Armadas de um país – estabelecidas para defender o cidadão, defender o território – por uma ideologia, começa a fazer do seu próprio povo um inimigo, a partir de ideias, de religiões…

O letrista continua.

—  Então, o povo, em vez de ter como inimigos os bárbaros, os vizinhos, os colonizadores, tem o próprio Exército, que ele paga com o seu imposto. Porque são os caras pagos para defender o cidadão que começam a substituir o bandido. A velha lição da máfia, vender proteção contra você próprio e o cara tem que pagar.

—  Aí eu queria fazer alguma coisa sobre isso, mas eu nunca entrei na onda da canção de protesto. A minha não é essa. Eu acho que deu algumas músicas bonitas, como o próprio Caminhando (‘Pra Não Dizer que Não Falei de Flores’), que é linda, ‘Disparada’, que é linda.

 — Geraldo Vandré fez algumas bonitas, Chico também fez de uma maneira mais poética. Mas eu achava que eu tinha que falar isso de uma maneira tão poética que só eu mesmo explicaria a razão da minha revolta.

 —  Eu estava levando o meu filho no jardim de infância, na escola, em Ipanema, quando me veio a ideia: nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor. O meu raciocínio era o seguinte: há uma trincheira da morte no Brasil. Os caras estão entrincheirados, atirando, jogando bombas. E do outro lado estava a alegria, a felicidade, coisas como Novos Baianos, o futebol, o Carnaval, a poesia. E eles são a morte. Agora, como é que eu vou falar isso? Eu percebi que eu poderia fazer a metáfora de uma guerra que fosse uma festa do interior brasileiro, uma festa de São João.

 —  De onde veio o outro verso, onde tem bomba, mas ninguém mata e ninguém morre. São bombas da guerra magia, ninguém matava e ninguém morria. Aí eu falei: ‘Então eu vou botar uma festa de São João que seja a metáfora dessa guerra’. Eu comecei a descrever a festa de São João sem canjiquinha, sem barraquinha, com pinceladas absolutamente originais.

Relata sem falsa modéstia o poeta Abel Silva.

Como Abel Silva convidou Moraes Moreira para compor “Festa do Interior”

— Aí eu falei: ‘Isso é Moraes’. Liguei pro Moraes. Fiquei um pouco entre Moraes e Dominguinhos, que também é meu parceiro, é muito alegre, mas mora em São Paulo. Moraes mora no Rio. Aí eu peguei e mandei pro Moraes por telefone: ‘Moraes, pega aí a caneta’. Eu fiz muita música assim. Aí eu fui ditando pra ele.

— Quando eu estava ditando a letra por telefone e chegou nessa parte ‘nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor’,  o  Moraes falou: “Abel, você é carioca e está mandando esse negócio de São João pra mim? Pô, parceiro, que coisa linda! Vamos fazer, vamos fazer’! Eu desliguei. Deve ter demorado uma meia hora, 40 minutos, Moraes Moreira retornou a ligação e cantou a música inteirinha, exatamente como ela é hoje. Ele fez praticamente lendo. Quando ele chegou ao fim da quarta, quinta vez, a música já estava pronta.

—  Aí a dona Maria da Graça, Gal Costa, estava preparando o show para o Canecão – no tempo em que o Canecão era o Canecão. Não tinham outras grandes casas no Rio de Janeiro. Era um show preparado para arrebentar. Lincoln Olivetti como arranjador, grandes músicos, cheio de alegria. Incluiu a música que saiu puxando o show, o disco e ainda levou a Gal a fazer outro show no Maracanãzinho, chamado Festa do Interior. Eu fui lá assistir. Vi aquele Maracanãzinho, no bis, o público cantando a música toda. E não queria parar. Era para cantar a noite inteira.

De acordo com Abel Silva, “Festa do Interior “tem mais de quinze versões no exterior: finlandês, japonês, espanhol-mexicano, espanhol-cucaracha, espanhol-cubano, cubanos-americanos, italiano, cada uma mais engraçada do que a outra. No Brasil é uma música que toca em qualquer época, principalmente no Carnaval e nas festas de São João.

O frevo “Festa do Interior” foi gravado por Gal Costa, no LP Fantasia (1981), no CD Meu Nome é Gal: O Melhor de Gal Costa ,(1988), no CD Gal – Série Grandes Nomes (1994); pelo conjunto Fevers, no LP A Maior Festa do Mundo (1983), por Moraes Moreira no CD Moraes Moreira – Acústico (1995), e no CD Bahião com H (2000), além de outros registros.

— Eu só conseguiria falar contra um terrorista esfregando na cara dele uma ‘Festa do Interior’, mostrando que ele é a morte. E que ele não deveria ter o direito de levar a morte dele para pessoas felizes e alegres. Ele não quer saber se tem uma criancinha no colo de uma mãe de 30 anos. Então, a minha linguagem sempre foi essa. Eu digo de uma maneira clara, mas eu não digo de uma forma unívoca, que tenha uma leitura só. Eu não conseguiria dizer: soldados armados, amados ou não. Eu estaria sendo muito óbvio. Eu acho fortíssimo, mas eu não diria assim. 

E foi assim que Abel Silva descreveu a história e as inspirações da música “Festa do interior”.

Festa do Interior

(Moraes Moreira/Abel Silva)

Fagulhas

Pontas de agulhas

Brilham estrelas

De São João…

Babados

Xotes e xaxados

Segura as pontas

Meu coração…

Bombas na guerra-magia

Ninguém matava

Ninguém morria…

Nas trincheiras

Da alegria

O que explodia era o amor

Fagulhas

Pontas de agulhas

Brilham estrelas

De São João…

Babados

Xotes e xaxados

Segura as pontas

Meu coração…

Bombas na guerra-magia

Ninguém matava

Ninguém morria…

Nas trincheiras

Da alegria

O que explodia era o amor

Ardia aquela fogueira

Que me esquentava

A vida inteira

Eterna noite

Sempre a primeira

Festa do interior

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Ruy Godinho é paraense, nascido em Belém e renascido em Brasília. Pesquisador, radialista, escritor, produtor multimídia. Autor da série de livrosEntão, Foi Assim? – Os bastidores da criação musical brasileira”, com cinco volumes lançados.

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