Quando brotaram para o mundo através da janela do Tiny Desk, no dia 4 de outubro de 2024, os músicos e DJs argentinos Ca7riel e Paco Amoroso não imaginavam que sua vida iria virar de cabeça para baixo completamente a partir daquele momento.
Fato é que em menos de um ano eles saíram do posto de músicos do cenário indie de Buenos Aires num salto quântico para 10 indicações ao Grammy Latino (só perdendo para Bad Bunny, que teve 12), show no Jimmy Fallon, rosto da Yves Saint Laurent na Fashion Week de Paris, coleção na maior loja de departamentos da Argentina e headliners dos maiores festivais de música do mundo: do Coachella (EUA) ao Glastonbury (Reino Unido), passando por Roskilde (Dinamarca), Fuji Rock (Japão), Montreux Jazz Festival (Suíça) e Lollapalooza (Berlim, Paris, Argentina e Brasil).
Com uma amizade que vem desde os seis anos de idade, quando Ca7riel Guerreiro (Ca7riel) e Ulisses Guerriero (Paco Amoroso) compartilhavam a mesma carteira na escola, a dupla construiu sua trajetória musical a partir de raízes profundas no rock. Influenciados por ícones como Queen e Rolling Stones, ambos dedicaram anos ao estudo de instrumentos – Ca7riel na guitarra e Paco na bateria após uma passagem pelo violino –, fundando até uma banda de funk rock chamada Astor no início de carreira. Essa base instrumental sólida seria crucial para o que viria a seguir.
A virada veio com a explosão do trap na Argentina no final dos anos 2010, quando a dupla se lançou com sucesso nesse novo cenário, conquistando milhões de visualizações e sendo apontada como a “dupla mais bem-sucedida do trap” do país.
Antes de lançar seu primeiro álbum já com o nome da dupla, os músicos lançaram trabalhos solo. “Baño Maria”, lançado em 2024, distanciou os meninos do trap puro e simples, com uma mistura de reggaeton, house music, rock, jazz, funk e até música brasileira.
Foi com essa estrada e um disco debaixo do braço que os meninos se sentaram para gravar sua participação no Tiny Desk, programa de versões intimistas criado pela rádio pública norte-americana NPR que virou desejo de todo artista – e que em outubro desagua uma já igualmente hypada versão brasileira.
O visual desconstruído da dupla, as letras, os arranjos, a banda de apoio, o carisma, o groove. A soma de todos esses fatores fizeram com que o programa se tornasse um hit no mundo todo, somando hoje cerca de 42 milhões de visualizações e transformando a vida dos meninos numa loucura de fama e sucesso da noite para o dia.

Agênero em todos os sentidos
A dupla opera numa desconstrução constante. Na música, no visual e no comportamento. Eles incorporam elementos tradicionalmente associados ao feminino – como maquiagem elaborada, brilho, plumas, silhouettes delicadas, vestidos e gestos – sem abrir mão de uma energia visceral e, por vezes, agressiva, típica do rock e do punk. Essa mistura intencional borra as linhas do que é “roupa de homem” ou “atitude de mulher”. No palco, a performance alia sensualidade, vulnerabilidade e potência, criando uma narrativa plural e autêntica que desafia a normatividade.
As letras tratam de paixão, desejo e relacionamentos de forma não-binária. O foco está na intensidade da experiência emocional e sensual, e não na definição dos corpos ou identidades envolvidos. Isso permite que uma audiência diversa – LGBTQIA+, heterossexual, binária e não-binária – se identifique com as músicas de uma forma mais livre, pois as narrativas não se restringem a modelos ou estereótipos.
Paco Amoroso e Ca7riel tornaram-se ícones naturais para uma geração que vive a fluidez de gênero como algo intrínseco à sua identidade. Eles não precisam fazer discursos explícitos sobre o tema; sua própria existência artística é a mensagem. Ao se apresentarem com essa liberdade, normalizam a expressão de gênero fora da caixa e oferecem um referencial poderoso para jovens que buscam representatividade na cultura pop. Eles mostram que é possível ser bem-sucedido, cool e respeitado sem se encaixar em padrões masculinos tradicionais.
A dupla bebe de fontes que sempre desafiaram as normas, como o glam rock de David Bowie, a atitude andrógina de Prince e a estética queer de artistas latinos como Miguel Bosé em sua fase mais ousada. No entanto, eles atualizam essa herança para o contexto contemporâneo sul-americano, com uma linguagem fresca e uma naturalidade que a torna acessível. Eles não estão “interpretando um papel”. A importância da fluidez de gênero no trabalho de Paco Amoroso e Ca7riel é estrutural.
Desde o Tiny Desk, a agenda da dupla tomou dimensões globais. A turnê “Papota”, nome de seu EP mais recente, não só impressiona pela quantidade, mas pela altíssima relevância dos eventos. O duo iniciou o ano com força total no festival mexicano Bahidorá e no consagrado Cosquín Rock argentino, e a partir de março escalonou globalmente, com o circuito sul-americano do Lollapalooza (Buenos Aires, Santiago e São Paulo), seguido pelo prestigiado Estéreo Picnic na Colômbia e pelo massivo Tecate Pal Norte no México. O ápice dessa primeira metade do ano foi a histórica participação no Coachella, nos EUA, um palco que consagra artistas globalmente e simboliza seu ingresso definitivo no mainstream internacional.
No segundo semestre estiveram em todos os grandes festivais europeus e, em setembro, voltaram ao Brasil para dois shows esgotados, no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde fizeram apresentações lotadas de fãs que cantaram a plenos pulmões todas as letras em espanhol, provando que essa barreira de língua foi deixada para trás.
Setembro também trouxe o anúncio dos indicados ao Grammy Latino, com os meninos conquistando a vice-liderança em número de indicações, atrás do porto-riquenho Bad Bunny. Foram 10 nominações, entre elas as estreladas categorias de Álbum do Ano e Canção do Ano pelo trabalho no EP “Papota”.
Mais do que um fenômeno da música, Ca7riel e Paco Amoroso representam um marco comportamental. Sua ascensão meteórica simboliza muito mais do que a quebra de barreiras linguísticas. Estamos falando de colocar a fluidez de gênero como expressão artística legítima e o poder da autenticidade em uma indústria globalizada. Eles não apenas levaram o espanhol argentino para os principais palcos do mundo, mas também demonstraram que a nova geração latino-americana está redefinindo o próprio conceito de identidade e deixando para trás o conceito mofado do macho latino. Seu sucesso é a prova definitiva de que o futuro da música será plural, fluido e irresistivelmente catártico. Graças às deusas!
Ca7riel & Paco Amoroso no Tiny Desk Concert
Claudia Assef é editora-chefe da Billboard Brasil, sócia do Womens Music Event e publisher do Music non Stop.








