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Como Angela Ro Ro criou ‘Amor, Meu Grande Amor’

Como Angela Ro Ro criou ‘Amor, Meu Grande Amor’

Angela Ro Ro

A cantora,  pianista e compositora Angela Ro Ro morreu nesta segunda-feira (8), aos 75 anos. Dona de uma voz única que misturava blues, rock, samba-canção e bolero. Esta coluna fala das inspirações e da obra de umas das artistas mais originais da música brasileira, além de contar a história de como uma melodia cantada em inglês e uma separação da letrista com um astro da MPB fez nascer “Amor, Meu Grande Amor”, o maior sucesso da carreira de Ro Ro.

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Moraes Moreira (Márcio Almeida/Divulgação)

Como o rádio criou a voz de Angela Ro Ro

Embora tenha nascido com o advento da TV no Brasil, Angela Ro Ro foi criada com o poder e a força de comunicação das emissoras de rádio. A seguir, a compositora conta em diversas entrevistas como o meio de comunicação foi determinante no seu trabalho.

“Rádio Nacional, Rádio Mayrink Veiga, enfim, tive uma série de influências, não só de música. Ouvia João Dias, Lana Bittencourt, Aracy de Almeida, ainda se tocava muito Mário Reis, que é o precursor da bossa nova. João Gilberto que me perdoe, mas Mário Reis era genial: Jura, jura…”, explicou Angela Ro Ro.

Segundo os pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Melo, ao romper com a tradição do bel-canto italiano, que imperava até então, Mário inaugurou um novo período na história do canto popular no Brasil, que passou a ser mais natural e espontâneo. Intérprete ideal para os sambas de Sinhô, gravou Jura, em 1926, que é considerado o maior sucesso do compositor.

Acontece que o cantor e compositor Sílvio Caldas tinha uma teoria impagável para o surgimento dessa forma de cantar, inspiradora de João Gilberto:

“O Sinhô frequentava a casa da Tia Ciata. Eu era um pouco mais moço que ele. Eu conheci a Tia Ciata muito menino, ali na rua Visconde de Itaúna, que foi o berço do samba. A velha Tia Ciata era uma descendente de africanos, baiana. O Sinhô tocava piano. Eu gravei várias coisas dele. (…) Até que veio a tuberculose e ele ensinou ao Mário Reis, já doente, com aquela respiração ofegante. E o Mário Reis, então, aprendeu a cantar o Jura. Assim, ele não cantava: JURA, JURA… [canta forte em ritmo de samba], porque ele não tinha fôlego. Então, ele cantava: Ju-u-ra, ju-u-ra, ju-u-ra, pelo senhor… [baixo e ofegante]. O Mário Reis cantou igual a ele e criou o gênero que todo mundo diz que foi o João Gilberto que criou. Nada disso. O Mário já cantava assim há 312 anos”, disse no programa Ensaio, da TV Cultura.

Mas vamos voltar com o relato de Ro Ro sobre o rádio:

“Eu ouvia as grandes cantoras Dircinha e Linda Batista, Emilinha e Marlene… Foi fantástico. Foi ali que eu ouvi as primeiras canções de Cauby Peixoto cantando, por exemplo, as coisas estrangeiras que eram menos tocadas massificadamente. A gente era sempre presenteada no Natal com Bing Crosby, White Christmas. Enfim, rádio pra mim foi, é e continua sendo tudo”, confessa.

Ro Ro conta o que sentiu quando ouviu “Amor, Meu Grande Amor” tocando no rádio: “Aí foi genial. As primeiras vezes que a minha música tocou no rádio, ‘Amor, Meu Grande Amor’, o primeiro disco que fiz pela Polygram, em 1979, ainda no finalzinho do ano começou a ser tocado. Foi muito bom, uma coisa super gratificante”, disse.

“Amor, Meu Grande Amor”, coincidentemente, foi o primeiro sucesso da poeta e compositora Ana Terra, autora da letra, que também teve o rádio como grande fonte de influências.

“Na minha casa sempre se ouvia muito rádio. E foi através do rádio que eu conheci as principais influências que me envolveram com a questão de letra de música, que foi Dolores Duran e Vinicius de Moraes. Desde pequena eu tinha muita curiosidade sobre autores das músicas, tanto da melodia quanto da letra. Então o rádio teve muita importância naquela época porque você ouvia muita música brasileira. Eu me lembro quando ouvi Johnny Alf. Fiquei muito emocionada quando ouvi Saudades da Bahia, do Dorival Caymmi. Eu ficava pensando como seria aquele homem que saiu do lugar que nasceu e veio pro Rio. Eu fiquei muito mobilizada. Pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz, eu achava uma frase linda e nunca imaginaria que, mais tarde, iria conhecer pessoalmente e fazer parte da família dele. Enfim, o rádio foi muito importante, muito mesmo”, afirma Ana.

Antes de saber os detalhes da única parceria entre essas duas mulheres que não se conheciam, é importante revelar o processo criativo de ambas. Com a palavra, Angela Ro Ro:

“Eu não tenho bem uma regra, certo? Eu não sou uma pessoa de ficar fazendo música de encomenda, mas posso fazer música de encomenda hoje em dia com maior facilidade porque estou com maior concentração e maior poder de elaboração, mais racional. Eu não estou tão só emotiva. Agora, normalmente, vem uma coisa assim espontânea, vem letra e música; às vezes, de uma vez só; vem, às vezes, um mote. Mas, normalmente, vem uma coisa na cabeça que fica repetindo um pouco e eu tento gravar num ‘jurunazinho’. Mas, enfim, o processo costuma ser vital, costuma ser orgânico. E obviamente que a gente vai elaborando depois e consertando. Se for com parceiro, ele manda a música e eu ponho a letra em cima ou o parceiro manda a letra e eu dou um jeito de musicar, à satisfação do freguês”, desvenda.

Ro Ro é autossuficiente na função de compor música. Cria tanto melodias quanto letras. Ana Terra, por sua vez, é uma mestra somente nas letras. O que oportuniza os encontros, as somas, a multiplicação das possibilidades.

“Eu preciso ser motivada ou por uma música que eu goste muito, que o meu parceiro me manda e eu vou ter que descobrir que palavras já existem nela. Porque eu acho que o músico está se comunicando através das notas musicais, mas ali já está embutido tudo o que ele quer dizer. Às vezes, até eu gosto da música, mas eu não consigo fazer essa descoberta de trazer as palavras que no inconsciente do músico já existiam. Então, eu não faço. Às vezes, eu pergunto: ‘Você estava pensando em quê? Você estava sentindo o quê, quando fez’? – pra ver se eu consigo traduzir isso em palavras. Mas, às vezes, eles dizem: ‘Não, faz do jeito que você quiser. Não tem nome, não tem tema, não tem nada’. E aí eu fico ali ouvindo até que num momento essas palavras surgem e, em geral, são bem-aceitas pelo parceiro. Quer dizer, tem a ver com aquilo mesmo que ele gostaria de dizer”, esclarece Ana Terra.

Como Angela Ro Ro compôs “Amor, Meu Grande Amor”

“A música foi feita, a princípio, alguns anos antes, quando eu estava em Londres. Eu morei uns três anos em Londres. Eu fiz a ‘Canção da separação nº 1’, ‘The split up song number 1’. Quer dizer, eu era nova, tinha vinte e poucos anos, mas já via que eu ia casando, separando, casando, separando… Aí eu fui enumerando as canções das separações. Era assim [cantando com a melodia de Amor, Meu Grande Amor]: We hold each other hands, but baby, is not same/we better say good bye, cause the way it is, is driving me insane… Aí virou Amor, Meu Grande Amor pelas mãos de Ana. Enfim, essa é a história”, elucida Ro Ro.

Ana Terra conta como fez a letra de “Amor, Meu Grande Amor”

“No caso de “Amor, Meu Grande Amor”, eu cheguei de madrugada do Baixo Leblon e deu vontade de escrever. Sentei e escrevi aquela letra. Era aquilo que eu estava sentindo naquele momento, o desejo de encontrar um grande amor. Então, não preciso de uma paisagem externa, vamos dizer assim, preciso de uma paisagem interna, aquilo que eu estou necessitando pra fazer. Aí pode ser de dia, de noite, no meio do barulho, enfim… Agora, como é um trabalho muito recolhido, eu gosto de ter minha mesinha pra escrever. Mas pode ser na cama, de noite, acordar e ter uma vontade de escrever”, relata Ana Terra.

“É mais uma coisa do acaso, do destino, que deu muita sorte pra mim e pra Ângela, essa música sempre nos deu muita sorte”, prossegue. “O Paulinho Lima era o empresário da Ângela. Eu tinha uma sociedade com ele em uma editora musical. Aí, ele estava produzindo o primeiro disco dela na Polygram, que foi o Antonio Adolfo quem dirigiu e fez os arranjos. Ele perguntou se eu tinha alguma letra. E eu tinha feito justamente essa e ofereci. ‘Ah! Paulinho, eu tenho essa, não sei se ela vai gostar’. Eu também não conhecia a Ângela.”

Ana Terra, na ocasião, estava separada de Danilo Caymmi, com quem fora casada desde 1973.

“É, eu estava sozinha. Eu e Danilo tínhamos nos separado e tal. E aí o Baixo Leblon era um lugar onde muitos artistas se reuniam, as pessoas se encontravam à noite e bebiam, conversavam. E eu cheguei a casa e me deu vontade de escrever, eu estava querendo, eu estava muito… Eu sou uma pessoa muito romântica, estava acreditando que esse grande amor ia acontecer, mas não ia ter uma hora marcada pra acontecer. Eu teria que estar aberta porque ele não tem hora marcada, ele vai acontecer a qualquer momento. Mas eu achava que tinha que ser à primeira vista. Então eu falava, se ele me reconhecer é porque realmente é um grande amor. Enfim, fui escrevendo aquelas coisas que eu estava sentindo naquele momento. E aí mandei pra Ângela e ela tinha uma música que ela tinha feito com uma letra em inglês. E a minha letra se encaixou na música. Foi assim um casamento perfeito.”

Mal sabia Ana Terra que daquele momento de carência afetiva e aflorada solidão estava surgindo mais uma letra de música que seria de grande popularidade nacional. “Escrevi o que estava desejando naquele momento. Sempre escrevo os meus desejos para que eles ganhem forma e força”, declara-se adepta da neurolinguística, ciência que põe o Universo para conspirar em favor dos desejos e metas.

Música gravada, começou aí uma trajetória de êxito.

“É impressionante! Isso está sendo sucesso desde 1979”, festeja Ro Ro. “Frejat com Barão Vermelho gravaram em 1996. O que fez a garotada e os mais jovens, todos os milhões de fãs de Frejat e Barão Vermelho, acreditarem que aquilo era uma música do Frejat. Tanto que, na época, logo depois que eles gravaram, me perguntavam: ‘Poxa vida, você está cantando a música do Frejat’? Eu falei: ‘Não, o Barão é que está cantando a minha música, graças a Deus’!”

“Eu já tinha sido gravada por Elis Regina, Milton Nascimento, Maria Bethânia, quer dizer, os grandes”, relaciona Ana Terra. “Os meus filhos mais novos conheciam tudo isso porque eles ouviam em casa, sempre ouviram música boa. Eles tinham uma boa cultura musical por causa da família. Mas os colegas deles não conheciam. Minha filha [Juliana] ficava revoltada e dizia: ‘Mamãe, no meu colégio ninguém sabe quem é o vovô [Dorival Caymmi], ninguém sabe quem é Tom Jobim’. Aí, quando o Barão Vermelho regravou Amor, Meu Grande Amor, que era uma banda que tinha esse público mais jovem, da faixa etária do meu filho Gabriel, ele falou: ‘Ah! Finalmente meus amigos conhecem alguma música sua’”, comenta.

A música foi registrada no LP Angela Ro Ro (Polydor, 1979) e pelo Barão Vermelho no CD Álbum (WEA Music, 1996).

“Então, as pessoas que estão sentindo a mesma coisa que eu estava sentindo naquele momento em que escrevi, se identificam. Por isso que a música faz sucesso”, conclui Ana Terra.

“Amor, Meu Grande Amor” (Ana Terra/Angela Ro Ro)

Amor, meu grande amor Não chegue na hora marcada Assim como as canções

Como as paixões e as palavras Me veja nos seus olhos

Na minha cara lavada Me venha sem saber

Se sou fogo ou se sou água

Amor, meu grande amor

Me chegue assim bem de repente Sem nome ou sobrenome

Sem sentir o que não sente Que tudo que ofereço

É meu calor meu endereço A vida do teu filho

Desde o fim até o começo

Amor, meu grande amor

Só dure o tempo que mereça E quando me quiser

Que seja de qualquer maneira Enquanto me tiver

Que eu seja a última e a primeira E quando eu te encontrar

Meu grande amor Me reconheça

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Ruy Godinho é paraense, nascido em Belém e renascido em Brasília. Pesquisador, radialista, escritor, produtor multimídia. Autor da série de livros “Então, Foi Assim? – Os bastidores da criação musical brasileira”, com cinco volumes lançados.

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