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Neguinho da Beija-Flor fala sobre boicotes sofridos e aposentadoria aos 76 anos

Neguinho da Beija-Flor fala sobre boicotes sofridos e aposentadoria aos 76 anos

Ele foi jurado de reality que elegeu novos intérpretes para a Beija-Flor

Aos 76 anos, Neguinho da Beija-Flor ganha alguns segundos para responder como tem sido a vida. A esta altura, ele é o intérprete com mais campeonatos ganhos no Carnaval do Rio de Janeiro e, recentemente, decidiu interromper sua história na Marquês de Sapucaí para dedicar-se à carreira solo.

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“Olha…”, ele diz arrastando o último “a”, permitindo ao repórter ouvir sua maior característica vocal, um final áspero na voz —que por muito tempo equilibrou-se com o estampido agudo com o qual anunciava a escola de Nilópolis por meio de um “OLHA A BEIJA-FLOR AÍ GENTE”. Agora, antes de responder que a vida está normal, ele aguarda a estreia do reality show “A Voz do Carnaval” que elegeu Jéssica Martin e Nino com sucessores nos microfones da agremiação —o programa estreia no dia 4 de setembro, às 22h, na Multishow e Globoplay.

Por uma hora ao telefone, Neguinho mostrou-se desconfiado do mercado musical e das amizades, criticou o excesso de cobrança dos jurados do Carnaval, explicou porque parou de lançar discos logo após estrondoso sucesso de “Negra Angela”, nos anos 2000. Ao contar sobre um convite que recebeu para ilustrar uma publicação sobre a música brasileira, mostrou-se descontente com o pouco prestígio que recebeu comparado a artistas como Caetano Veloso e o amigo Emílio Santiago —um dos muitos episódios que, segundo sua entonação desacredita, confirma o samba como gênero sempre à margem do mercado musical.

Entrevista com Neguinho da Beija-Flor

Yuri da BS: Não é fácil para mim estar ao telefone com você, ainda mais tendo morado em Nilópolis.

Neguinho da Beija-Flor: É mesmo, é? Você é de lá? Que maravilha.

Como você está?

Tudo bem, graças a Deus.

Como é ser o Neguinho da Beija-Flor aos 76 anos?

Olha… Normal… A única diferença, assim, é que eu não tenho a mesma disposição de encarar uma avenida, conciliar a carreira e, ao mesmo tempo, os compromissos com a escola. Exige muito, muito, muito. Então, eu tomei a decisão de passar o microfone para a nova geração. E eu estou muito mais à vontade agora, tendo só a carreira solo.

Há quanto tempo você sentiu que a Sapucaí estava pesando?

Foi há uns três anos. Eu já não estava mais… Eu já senti a avenida rodar… Tipo assim, uma vertigem! E eu disse “opa!”. A perna dói, cãibra. Aí, fui fazer um tratamento. Fiz acompanhamento e coisa e tal. Mesmo assim, com isso tudo, senti que era coisa da idade. Ensaios toda as quintas, cantar duas horas e meia, compromisso com ensaio técnico, ensaio de rua… Você sabe, né? Ensaio de rua na Mirandela todos os sábados… Como eu vou fazer show tendo compromisso com ensaio de rua e quadra? Aí pegava voo toda sexta para fazer show em Manaus, Nordeste… Foi com 70 que eu comecei a sentir o peso. Não teve outra alternativa a não ser ficar com um lado só. Esse lado [da carreira solo] não me cansa.

Senti muito. É um casamento de 54 anos que, né, você está abrindo mão. É difícil viver sem o que você faz. Mas era a hora, não tinha outro jeito.

Quem foi mais contra a sua decisão?

(Risos) O público! Ele já convive mais de meio século comigo. “Mas jura que você parou? Não vai sentir falta?”. Claro que vou. A própria diretoria da Beija-Flor, o Anisio, o próprio Gabriel… Mas você tem que reconhecer que o tempo, como diz o mestre Cazuza, “O Tempo Não Para”. Não querendo fazer comparativo com Pelé, Maradona e Zico. Mas eles não tiveram que parar? Então, cheguei a conclusão do quão difícil é parar de fazer algo que você gosta. Eu ficava imaginando isso do Pelé, de quando ele iria parar, sentir que o corpo não obedeceria a cabeça. Mas eu não percebi que EU ia passar por isso (risos). Um Roberto Carlos, cantor, já não precisa mais da música… Por que não para? (risos) O povo não deixa. Mas não quero que aconteça comigo o que rolou com o Tim Maia. Quer saber? O tempo é inimigo da perfeição. Eu só senti que teria de parar. Eu te confesso que nunca passou pela minha cabeça.

Imagino que pela cabeça do Jamelão também não! (risos)

Rapaz, eu via o Jamelão com aquela idade toda, eu dizia “ah, eu vou chegar também”. Mas, infelizmente, não.

O que deixa o feito do Jamelão incrível, né

Exatamente! 94 anos… São 20 anos a mais do que eu. Gente! Eu não aguentei! Lógico… O Jamelão não fazia o que faço. Ele chegava na avenida, pegava o microfone e pronto. Não ia para ensaio, não tinha os compromissos que tenho. Chegava na avenida e cantava. Mas, hoje… Como é seu nome mesmo?

Yuri, seu Neguinho

Na época do Jamelão, Yuri, você chegava, cantava e acabou. Cantava o que você queria e no seu tom. Hoje, inventaram “ah, tem que cantar acima do tom pra dar mais brilho”. É jurado cobrando em cima… Antigamente, eu falava “Simbora, gente!”. Não é mais o correto. Agora tem de ser “Vamos embora, gente!”. “Simbora” virou erro. Tá me entendendo? [Neguinho toma fôlego e reproduz sua voz de intérprete] “Vamo lá, meu povo!”, não. Agora é “Vamos lá, meu povo”. Aí, vem o jurado e te cobra esse “s” que você comeu. Entendeu?

Isso é uma crítica que o Carnaval carioca vem sofrendo, sobre os critérios. Essa sua fala corrobora?

Eu acho… que não. É minha opinião. Eu não posso prejudicar a escola com esse tipo de declaração. Mas a exigência dos jurados está matando, tirando a beleza, a autenticidade do desfile, o brilho do Carnaval.

Você lembra qual foi a vez mais decepcionante a partir de um corte dos jurados?

É… “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”, com certeza [emblemático desfile da escola nilopolitana, de 1989. Na ocasião, a Beija-Flor perdeu pontos em Evolução, Conjunto e Samba-enredo, com o julgador João Máximo tendo considerado o refrão do samba “ofensivo à língua portuguesa”]. Embora, a Imperatriz também merecia. Mas também teve “Araxá” [ Lugar Alto Onde Primeiro Se Avista o Sol, de 1999]. Como também já teve desfiles da Beija-Flor que eu não imaginava que ia ser campeã. Uma coisa pela outra.

Falando da sua carreira solo, você lança discos regularmente dos anos 1970 até 2000. Depois do sucesso de “Negra Ângela”, você não solta mais discos. Por que?

Porque veio a Internet! (risos) Contribuiu com muita coisa e destruiu outras, principalmente as gravadoras. Sem gravadora, fiquei orfão. Ainda tentei fazer algumas coisas autorais, mas sozinho, não entendo nada do mercado… Onde eu vou tocar? Por onde vou receber? Entendeu? A gravadora acabou e com ela minha carreira.

Mas não tinha ninguém interessado em lançar a obra do Neguinho da Beija-Flor?

Mas lançar onde, por onde? Hoje taí o sertanejo… Mas como descobrir esse caminho? Quem sabe não diz. De 2000 pra cá, lógico, surgiram vários cantores e sucessos. Mas qual o caminho que ele pegou? Eu parei no tempo! Ficava pensando “como esse cara consegue fazer as músicas serem conhecidas? Como ele recebe direitos autorais? Onde ele toca?”. Entendeu? Eu fiquei parado nesse vácuo de 2000 pra cá.

Então, você tá me dizendo que esse elo com Xande de Pilares é o primeiro movimento depois dos anos 2000 e essas dúvidas todas.

Ah, Yuri, eu sou muito agradecido ao Xande de Pilares. Ele me deu essa visão, sabe.

Ele te ligou? Como foi?

Ele me chama de “mestre” (risos). Lógico, comecei muito antes. Ele sempre me falava isso. E eu achava que era… O Xande é muito maravilhoso e eu ficava achando “ele viu que minha carreira tá estagnada, tá me chamando de mestre, me dando um certo conforto”. Mas não! Ele gravou minhas músicas e eu fiquei “meu Deus do céu, acho que ele é meu amigo mesmo!”.

Você é muito desconfiado.

(Risos) Eu cheguei a conclusão de que ele gosta de mim. De que eu representei algo para ele, lá trás. Ele convidou o Ferrugem, grande sucesso do momento, Zeca Pagodinho, Pique Novo, Renato da Rocinha, Andrezinho do Molejo, Teresa Cristina… Só a nata… Ô, muito obrigado.

Você fala como se não merecesse.

Ô, Yuri, eu acho o seguinte: é uma competição. Eu não pensava que existisse amigo e, sim, um inimigo cordial. Porque o que eu presenciei durante todo esse tempo foram pessoas… Um querendo engolir o outro, querendo ser mais rico que o outro. Tá entendendo? Eu sou muito observador. E uma pessoa fazer o que o Xande fez, tirou um pouco desse conceito. Existe amigo mesmo no mundo da música.

Teve alguma vez que te puxaram o tapete? Pelo que eu vejo, você tem muitas ressalvas.

Para mim era assim: “Oh, meu irmão, tudo bem! Sucesso pra você!”. Sucesso, nada! “Tomara que sua música não toque na rádio para sobrar mais espaço para mim”. Era assim que eu pensava que os outros estavam pensando quando acenavam para mim. É uma intuição. Já fui muitas vezes cortado dos programas de televisão. Quantas vezes fui tirado da pauta para entrar outro cantor! Meu Deus do céu… Já rolou muito. Chegar na rádio e não ter espaço porque tem que tocar fulano ou ciclano cinco vezes por dia.

Teve uma ocasião que uma revista foi fazer uma homenagem e eu tava inserido. Aí fui no lançamento: botei a melhor roupa e fui receber o livro. Eu vou dizer os nomes: tinha 10 fotos do Caetano Veloso, 10 do meu irmão Emílio Santiago, 10 do Gilberto Gil. E na minha página não tinha uma foto minha. Não podiam botar umazinha minha? “Grande nome do Carnaval, voz difícil de ser imitada, não sei o que…”. Mas nenhuma foto. É o mundo do mais forte, uma competição. Aí devolvi o livro!

Meses depois, essa publicação me convidou para uma nova festa. Botaram uma foto minha gigantesca na porta do evento. Aí, eu não fui! (risos). Encarei como uma malcriação.

Curioso que é sempre contra o samba, não?

Exatamente! Principalmente com intérprete. Agora somos Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro. Muito obrigado, até. Mas que coincidência, né? Mas é isso. O samba é o segmento que menos tem destaque. Você vê o sertanejo, outros segmentos, um sucessinho e poxa… Emplaca duas músicas e tá rico. No samba, o compositor continua ali…

Qual seu top 3 de intérpretes —agora Patrimônios Imateriais?

Jamelão (Mangueira), Aroldo Melodia (União da Ilha), Ney Viana (Padre Miguel, Império Serrano), meu irmão Nêgo (Grande Rio, Império Serrano), Rixa (Mocidade, Tom Maior), Silvinho da Portela, Gera (Vila Isabel, Portela). Mas meu top 3 é Jamelão, Aroldo Melodia e Ney Viana.

Tem dois interpretes novos assumindo seu posto na Beija e estamos falando de uma escola que, apesar do mascote fofo, bica forte, tem sangue nos olhos pra ganhar. É uma missão complicada para os novos substitutos.

É uma família, é Baixada Fluminense. É um povo mais humildade, classe menos favorecida. Não tem milionários. Então, é uma escola que se destacou e que representa aquele pedaço de chão do Rio. Quem frequenta e desfila, é uma pessoa que tem a Beija-Flor como representante do povo humilde. A minha passagem de microfone… Eu não sabia que ia ter a repercussão que teve. Eu dei entrevista pro mundo todo.

Mas eu não deixei a Beija-Flor, não! Ainda vou desfilar muito.

 

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