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Dia do Carimbó: conheça herdeiros do gênero

Dia do Carimbó: conheça herdeiros do gênero

Artigo analisa as tradições e futuro do Carimbó

Carimbó

Conta-se que o carimbó é uma manifestação cultural de origem negra e indígena, mas com influência portuguesa. Foi Marina Campos, dançarina e integrante do grupo de carimbó de mulheres indígenas de Alter do Chão, Suraras do Tapajós, quem me contou, em uma oficina de carimbó. Ela contou que a “pisada” dos povos originários e o molejo africano definiram a dança. De europeu, a indumentária, que foi ressignificada. Os homens dançam descalços, com a perna da calça levantada. Sem blusa, ou com a blusa amarrada no peito. As mulheres, pegaram a ponta da saia longa, que cobre toda a perna, e criaram um balé. Quando rodam, a saia levanta e mostra um pouco mais de corpo. Os homens dançam agachados, cada vez mais próximos do chão, para ver um pouco mais do que deveriam. E, assim, durante toda a noite, a música e a dança definem o ritual de conquista.

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Dia do Carimbó

No carimbó, celebrado em Belém no dia 26 de agosto, só existe música porque tem alguém pra dançar e sem tambor não se dança. Esse gênero reflete a cultura amazônica fruto da dinâmica do encontro dos povos originários, africanos e do controle europeu sobre eles, gerando vida, história, religião e festa. O carimbó é, basicamente, uma festa de resistência cultural, como foram as rodas de samba em toda a história colonial e imperial do território do Rio de Janeiro, por exemplo. Em Belém, ele ainda resiste no concreto, dentro de centros culturais ancestrais que celebram essa música, dança, festa, como herança de família e muito influenciado pela beira do rio. Foi assim que me contou o mestre de carimbó Nego Ray Mundé Silva, que comanda, há mais de 30 anos, o Espaço Cultural Coisas de Negro, no distrito de Icoaraci, em Belém do Pará.

Icoaraci fica ao extremo norte do território continental de Belém e divide a Baía de Santo Antônio com as ilhas do Outeiro, de Cotijuba e do Mosqueiro. Por isso, é a Belém que tem praia, que vive o artesanato e que, no fim de tarde, fecha os olhos junto do pôr-do-sol. Tem algo de mágico em morar tão próximo das águas e do horizonte que ainda respira livre sem prédios. É a memória do passado nos lembrando de onde viemos. Essas memórias ainda brilham vivas na mente do Mestre Nego Ray que reside no mesmo quarteirão de Icoaraci por toda a sua vida. Sua família era dona de um terreno de esquina a esquina na Av. Dr. Lopo de Castro entre as ruas Santa Isabel e Cel. Juvêncio Sarmento. É lá que ele vive até hoje e oferece à comunidade o espaço Coisas de Negro, onde ele salva e guarda a cultura ancestral desde 1992.

Quando pergunto a ele de onde sua família é, ele responde que sempre moraram ali. Para um centro urbano na Amazônia como Belém, essa não é uma resposta comum, entendendo que a capital é formada por famílias que migraram de ilhas, de vilas na beira dos rios que deságuam na Baía do Guarajá e, mais tarde, de outras cidades do interior da Amazônia e do Nordeste. Nego Ray também conta que sua mãe lhe contava que os pais dela eram indígenas e que tinha um tio que tocava sax e gostava de fazer festa, de fazer carimbó. É a ele que Nego Ray credita a herança familiar de manter viva a cultura. Ele cresceu entre as festividades que tinham nomes de santos católicos e que nelas se faziam os sons ancestrais. Mais tarde, já homem feito, o tambor chamou as mãos nas “Zimbas”, como eram chamadas as festas de carimbó, e a experimentação com o teatro negro do grupo Bambarê, do movimento negro do Pará, foi o caminho decisivo para que ele entendesse sua trajetória na música e na cultura deste território: ele seria um mestre, o responsável pela herança. 

Na década de 1990, o Coisas de Negro era usado como espaço para ensaios de teatro e para oferecer aulas de cultura para a comunidade. Muitos grupos de arte e de música, no caminho de pegar o barco para atravessar a baía para a Ilha de Cotijuba, paravam lá para criar um som na madrugada. É só em 2000 que cria moldes de centro cultural como conhecemos hoje, com uma programação semanal que fomenta a cena dos diversos grupos de carimbó que estão espalhados pela cidade e em outros territórios do estado do Pará, onde o ritmo ainda reflete a cultura da comunidade. Desse fluxo de encontros com diversos grupos, novas gerações foram criadas dentro desses espaços. O grupo de carimbó urbano Batucada Misteriosa é um dos filhos gerados pelo espaço cultural Coisas de Negro. 

Formado por jovens na faixa dos 30 anos, o Batucada Misteriosa nasceu da brincadeira de fazer carimbó, assim me conta o percussionista e co-fundador do grupo, Yuri Moreno. A brincadeira começou em um círuclo de amigos que frequentava o Coisas de Negro, mas gostava de batucar na Ilha de Cotijuba, no Chalé do Moreno, território de Yuri, que fica na Praia do Vai-Quem-Quer. Lá, quando o grupo nasceu, em 2016, o preconceito tolhia o batuque, que era lido como macumba e, por isso, criminalizado. Por anos, circular com o tambor nas praças de Cotijuba era visto como vadiagem e perturbação pública. Isso só mudou com muitas trocas com a comunidade, inserindo o carimbó também como atrativo turístico e com o prestígio que o grupo adquiriu depois de circular em palcos de festivais e eventos paraenses com o Motins, encontro de arte e cultura periférica da Pan-Amazônia realizado pelo Festival Psica, o maior evento independente do Norte.

Foi no palco do Motins que o Batucada Misteriosa ganhou o holofote que vinha construindo nos últimos anos. O pocket show feito no evento deixou um gostinho de quero mais, junto com fogo aceso que colocaram no palco pela força que batem carimbó e pelas palavras dos versos afiados, de crítica, de celebração, de pensamento sobre Amazônia e contemporaneidade. Se antes o carimbó era tido como uma câmara onde os povos negros e indígenas guardavam sua cultura, história e religião, hoje, mais do que nunca, é um estilo onde os novos músicos e compositores do gênero podem discutir a vida contemporânea pelo olhar ancestral das culturas tradicionais. O carimbó, antes de música, dança e arte, é uma tecnologia de comunicação, educação e registro histórico de pensamento, repassado de geração a geração como um herança.

No palco do Motins, outros herdeiros desta história também fizeram seu nome e, assim como o Batucada Misteriosa, também galgaram espaço no line up do Festival Psica. De outro território mas com uma história que se conecta, o grupo Toro Açú produz carimbó do Quilombo do Abacatal, território ancestral  de 314 anos localizado no bairro do Aurá, no  município de Ananindeua, a segunda maior cidade da região metropolitana da capital paraense. Envolto de natureza preservada e dentro de um centro urbano da Amazônia, o Toró Açu, formado por três jovens irmãos e seus amigos e produzido pelo pai deles, canta suas vivências e registra sua cultura, memória, encantarias e história de resistência de seus mais velhos. 

Lá no quilombo, eles ainda enfrentam o preconceito de não serem vistos como um território de conhecimento, técnicas e cultura que lhe bastam. Um exemplo é a história da música “Casa de Farinha” que David Maia, integrante do grupo, me contou. A casa de farinha é uma espécie de fábrica originalmente amazônica onde se produz uma série de alimentos a partir da mandioca. Todo o processo é construído com ferramentas criadas pela própria cultura indígena. Porém, nos anos 2000, o governo do estado do Pará construiu uma casa de farinha com equipamentos modernos, eletrônicos, dentro do quilombo. Sem energia elétrica na casa e com um maquinário que não combinava com a cultura milenar de produção de farinha, o espaço logo caiu no ostracismo. Anos depois, os jovens do quilombo ocuparam a casa para realizar festas de aparelhagem e rodas de carimbó, ganhando uma nova função. “Era high tech e o maquinário top de linha / mas só fizeram e usar ninguém podia / abandonada, tipo obra do BRT (égua!) / a comunidade já não tinha o que fazer / e a molecada disguiada se juntou na madrugada / pra fazer rock doido, carimbó e guitarrada”, canta a música. 

O carimbó, como manifestação cultural, é mais que música, é um traço cultural que nos liga diretamente ao território e à natureza. Só dá pra fazer curimbó, o grande tambor que marca o ritmo da dança, se tiverem árvores propícias para essa construção. Só dá para criar as maracas, que marcam o contrapasso e preenchem o som, se tivermos as cuias ideais para isso. O carimbó é alimentado pela natureza, seja o carimbó praiero, que conta a vida sob a perspectiva do pescador, seja o carimbó rural, das vivências do caboclo na floresta, seja o carimbó urbano que, na visão de Yuri Moreno, é um carimbó subversivo, que também é caboclo mas descreve a vida nos olhos do sujeito na cidade, que vive preconceitos, uma dinâmica direta com o colonizador, “e transforma isso em poesia”, explica Yuri.

São políticas públicas como a condecoração de um mestre, a titulação como patrimônio cultural imaterial e marcos como os dias comemorativos que auxiliam no registro oficial do carimbó como tradição que necessita de proteção. Mas outros espaços também são importantes para colocar o carimbó no mapa mundi da irreverência criativa da humanidade, como ele é. O Festival Psica, o maior evento independente de música e cultura amazônica, guarda pelo menos 50% de sua programação para gêneros culturais tombados como patrimônio. E o carimbó sempre recebe, claro, um carinho especial. Em 2025, Batucada Misteriosa e Toró Açu se encontram no palco representando os herdeiros dessa cultura e reverenciando o mestre Nego Ray como homenageado, que representa tantos outros baluartes dessa estética, como Mestre Verequete, considerado um rei, um guia espiritual e entidade que, se estivesse vivo, faria 109 anos hoje.

Em memória de Verequetes, Lourivaus e Milocas estamos nós, aprendizes e futuros mestres da cultura ancestral que resiste no canto dos olhos, nos becos, fundos de mercados, beiras de rios e quintais, espalhados pela Amazônia. É esta geração que segura no peito os conhecimentos e vai, nas festas, rodas e festivais, repassando a herança para quem vem em frente. O carimbó, sem dúvida, é um dos tesouros mais pomposos desse imenso testamento amazônico.


Gustavo Aguiar é jornalista e diretor de comunicação do Festival Psica. Já dirigiu a comunicação de mais de 30 festivais amazônicos no Pará, São Paulo e Rio de Janeiro e já escreveu para jornais no Norte e no Sudeste no Brasil. Pesquisa cultura, arte, identidade, comunicação e Amazônia.

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