Em novo LP, Hermeto Paschoal celebra saudade de ex-companheira: ‘Alegria imensa’
Homenageada em "Pra Você, Ilza", ela inspirava Hermeto com sua arte na cozinha
De 1954 a 2000, Hermeto Paschoal foi casado com Ilza da Silva, que morreu em decorrência de um câncer no pâncreas. Não é preciso papel passado para comprovar o elo porque o compositor e instrumentista de olhos estrábicos, um dos maiores expoentes da música brasileira, escreveu o nome de sua musa por toda a discografia. “Ilza”, “Ilzinha”, “Menina Ilza”, “Ilza Nova” são algumas das canções dedicadas à cozinheira que, segundo Hermeto, era livre nas criações “das misturas” como ele é na música. Eles se conheceram em Recife, depois que o jovem “bruxo” saíra do interior de Alagoas para tocar sanfona em Recife.
Além desse punhado de canções, algumas destacam a mão cheia de Ilza como “Ilza na Feijoada” e a tumultuada “Ilza Mentalizando a Feira” na qual Hermeto tenta reproduzir o fuzuê que eram os ensaios e os músicos perturbando o juízo da cozinheira. “Põe a tua música mais pra lá!”, diz o cantor imitando a esposa que, em dado momento, defende o marido ao ouvir alguém dizendo que “esse cara é muito doido! Ele toca muito doido!”. “Doido é sua mãe!”, contra-ataca a “Ilza” de Hermeto. Agora, essas homenagens se juntam a mais 13 inéditas que Hermeto, aos 88 anos, lança no LP —de título auto-explicativo— “Pra Você, Ilza”.
Em entrevista por telefone à Billboard Brasil, o compositor falou da forma como vê a morte, suas lembranças de Ilza e, principalmente, sobre suas conversas com Deus.
Eu queria saber, antes de tudo, se você tira tempo para ouvir música.
Eu não escuto nem as minhas. Porque a minha mente precisa estar sempre solta, aberta. As coisas vem e nada de parar! Porque como eu sou 100% intuitivo, esse dom que Deus me deu, então, nada é premeditado. Premeditar é arrogância. Ninguém tem o direito de premeditar. Você precisa respeitar o que sente, aquilo que vem no pensamento, o que você gosta. Se não quiser fazer também, é só esperar outra [ideia]. Por isso que a minha mente é sempre aberta, pois cada um de nós é um mundo. Eu perguntei pra Deus e ele respondeu pra mim “cada cabeça é um retrato do mundo. O lugar de vocês é na mente. Tudo o que tem de vir pra vocês é ali”.
E teve algo aqui na Terra que você ainda não fez, Hermeto?
O ser humano quando chega aos oitenta não tem nada do que se arrepender. Tudo o que aconteceu é o que tinha que acontecer. Tem de comemorar e cumprir a missão na terra que é a música.
Como é lembrar da passagem da Ilza?
Foi uma alegria imensa! Porque nós sabemos que nenhum espírito quer vir para o planeta para cumprir a missão. E ela veio, cumpriu incrivelmente.
Chama a atenção tantas músicas dedicadas à cozinha da Ilza.
Ela tinha o gosto de fazer o almoço, de convidar e de escutar as pessoas. Ela criava misturas e era como eu fazendo música: não tinha repetição, sempre criação. Ela fazia comida como eu faço música. É claro que eu gostava de todos os pratos. Mas, o meu, ela já sabia que tinha de ter o meu feijão. Tendo meu feijão, então, pronto. Muitas vezes o convite era para comer outra comida, mas ela já avisava que o feijão tava pronto. Era um divertimento total.
“Ilza Mentalizando a Feira”, obra de 2000 na qual Hermeto imita Ilza e suas reações em meio à feijoada e à bagunça causada pelos ensaios musicais
Quando você pensa na Ilza, qual é o maior retrato de memória?
Eu não guardo nada na minha memória, não, sabe? É aquela história: a minha memória não pode ficar com nada —a não ser esperando a mensagem. Como é um negócio espiritual, pra mim, o corpo é um carro. Com o espírito, você vem à terra e é isso.
Duvido que você não tem a memória de quando a viu pela primeira vez.
Assim que eu vi a foto dela na parede da casa do meu sogro eu… Nossa Senhora… Foi um tipo de comunicação muito especial. Ela era uma morena linda, bonita. Eu não sabia se ela tinha namorado, nada.
Ela estava na casa?
Não. Depois, meu sogro [o violonista Romualdo de Miranda] falou que ela tinha vindo aqui pro Rio e que ia voltar pra lá [para Recife]. Quando ela me viu, ela perguntou: “escuta, ele não abre os olhos, não?”. Porque eu tenho um problema na visão. Eu abro os olhos, mas eles não param de balançar. Quando eu abro os olhos, eles estão já indo para o outro lado. E aí, eu morri de rir com isso. E deu no que deu. Nos casamos, tivemos filhos [seis, no total]… Vivemos muito bem nesse tempo em que ela esteve na terra.
Você conversava sobre isso com ela, sobre estar na Terra?
Eu falava sobre ninguém querer vir pra cá. O lado bom mesmo é o universo, onde os espíritos moram. Aí, eles vêm [para o mundo terreno] com uma missão, já doidos pra irem embora. O que aconteceu comigo e com a Ilza foi sensacional.
Vocês ainda conversam?
Muitas vezes, quando eu estou tocando, eu sinto que ela está me olhando, dando tchau. Eu dou tchau de volta. A alma é que nem o vento: não para de ventar. Quando eu falo dela só sinto saudades, nada ruim. Deus é quem sabe que está na hora de levar e leva mesmo! E pronto! E sem aquela de querer ficar como as coisas pra si, como se fosse dono das coisas. Ninguém é dono de nada.
Eu ri muito com “Ilza Mentalizando a Feira” [do álbum “Solos Do Brasil”, com Sebastião Tapajós e Gilson Peranzzetta]. Era aquele tumulto mesmo? Ela gostava de toda aquela bagunça que vocês criavam durante os ensaios
Pois é [ri enquanto tenta falar]! Boa pergunta. Eu até esperava isso [que Ilza fosse dar broncas]. Não ia ser uma coisa ruim, nem nada, porque ela tinha esse direito de sentir. Mas, não. Ela morria de rir! Eu tava ensaiando com o pessoal e quando ela via que eu tava discutindo com os músicos, aquela coisa normal de ensaio, quem está de fora até pensa que é briga, mas ela não, sempre ria. E ela cozinhava sempre escutando nossos ensaios e ela amava e não dizia nada, porque ela já escutava muito. Quer dizer, eu pegava o ralador dela uma vez ou outra. E ela esbravejava. Mas assim como eu amava música, ela amava os ingredientes. Ela não era como hoje em que as pessoas assistem televisão para aprender comida. Não. Ela gostava de criar. Sempre tinha coisas diferentes, criativas nas coisas que ela fazia. A “feijoada da dona Ilza”. Eu fiz até música que ficou famosa no mundo inteiro [“Ilza na Feijoada”, do disco “Lagoa da Canoa Município de Arapiraca”, de 1984].
Como era a dinâmica musical de vocês? Você sentava ao piano e tocava algo para ela?
Ela pegou uma época que não tinha instrumento em casa. Eu não tinha instrumento. Mas ela curtia escutando o que eu fazia. Inclusive, ela me influenciava e, aí, que é esse negócio da música ser universal: a música não precisa ser tocada em um instrumento formal para ser música. Você pode estar comendo um pedaço de linguiça… E se você sente música enquanto morde, ele passa a ser uma atração e um instrumento. Isso é o meu pensamento, a minha maneira de viver. Uma feitura de comida espantosa de tão bonita que era.
Como foi a passagem dela, Hermeto?
Foi no pâncreas, aquela coisa famosa. Pelo que Deus me disse… Eu perguntei… Eu disse pra Deus e perguntei: “Por que as pessoas que morrem mais de câncer são as mais cultas?” E Deus falou: “Essas pessoas não vão demorar muito na Terra. Elas têm de fazer as coisas delas. Fazem e vão embora. É por isso que as pessoas inteligentes vão mais rápido”. E eu te digo isso com a certeza absoluta que eu estava falando com Deus. É difícil viver muito aqui na Terra quando você é muito bom porque o Universo está precisando de você.
E como você tem sentindo os seus 88 anos?
Nossa. Eu não sinto meu corpo, não. Meu corpo é um carro que Deus me deu de presente para eu viver na terra. Carro grande, sensacional. Mas as pessoas se admiram que eu, na minha idade, tenha uma disposição assim. Mas eu não me preocupo com ele, não. Ele vai de onde veio. E a nossa alma flutua por aí, universos, outras coisas e até por essa palavra que eu acho muito bonita: galáxias.
Nessas conversas com Deus, há algum medo ou preocupação que tem te aparecido?
Medo é uma coisa que nunca existiu em mim. Cuidado, sim. Medo antes de cuidado é coisa de quem se lasca. Meu cuidado é fazer o que eu gosto. Não ter aquela coisa do dinheiro, ganhar mais do que eu deveria para fazer mais coisas. Eu poderia hoje ter muita coisa, mas eu preferi ter minhas composições. Eu sou o compositor com mais música no planeta, sem vaidade. É uma coisa natural. Eu sou autodidata. Eu sou 100% sentir. Eu sou o sentir. Não premedito nada. Se eu premeditar qualquer coisa, pra mim, eu já fiz. É incrível!
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— moo, zezé motta day (@flertefatale) May 21, 2024
Montagem mistura “Susto”, de Hermeto Paschoal, com vídeo de dança de funk do influenciador Xurrasco021
Uma passagem sua que sempre me instigou foi você se espantar com o Tom Jobim dizer que estava cansado de “Garota de Ipanema”. [Hermeto tocou flauta em “Tide”, álbum de 1970 do compositor carioca voltado para o mercado norte-americano. No elevador, Tom ouviu seu maior sucesso e confessou-se a Hermeto]
Eu nunca me cansei da minha música. Nunca imaginei uma coisa dessa na minha vida! Pelo contrário! Esse cansaço é como se eu estivesse fazendo [atividade] física. Descansando e fazendo, descansando e fazendo. Eu criei até um verso assim para dizer para você. Eu já te disse ele ou não? É assim, ó: “Sobre a Música: Este canto vem de longe. A distância? Não sei dizer. Salve, salve a toda a gente que vive e deixa viver. Aqui vai o meu abraço. Com o som e o saber, Tirando de nossas mentes, As palavras pra dizer, A Música segura o mundo, Enquanto a gente viver, É a maior fonte sem fim, De alegria e prazer. Toquem, cantem, minha gente, Até o dia amanhecer”. Ele é simples como eu sou e, modéstia a parte, sem medo, bem criativo. Quando eu faço esse gesto, eu sinto que quem está escutando está criando outros gestos na hora. Imagina outras coisas na hora. É assim que tem de fazer conversa. Quem pensa em decorar já foi decorado e não sabe.
Obrigado por isso e pela entrevista, Hermeto.
Que entrevista maravilhosa com uma inteligência dessa. As perguntas todas, você pergunta o que você sentiu e não é à toa que você é isso aí, uma dádiva de Deus. Que seja cada vez mais feliz. Um beijo em todos da sua família, papai, mamãe, todos os seus. E a gente se encontra por aí, no show, num lugar qualquer. Fisicamente ou espiritualmente sempre estaremos juntos. Obrigado, até já. Tchau, tchau, tchau.