Conheça a história da Sapucaí, palco do Carnaval do Rio
Marquês da Sapucaí completou 40 anos em 2024


“Parabéns a Você” até ecoou pelos alto-falantes da avenida Marquês de Sapucaí no Rio de Janeiro. Mas a canção era uma homenagem a Martinho da Vila, bamba que completava 86 anos naquela segunda em que a Vila Isabel entrou na avenida. Pouco se falou sobre os 40 anos do sambódromo durante o desfile do grupo Especial –talvez porque a festa já estivesse marcada e planejada para o sábado seguinte, no desfile das campeãs.
No entanto, na plateia e na pista, era possível encontrar foliões que viveram essa história de quatro décadas bem de perto e celebraram o aniversário da Sapucaí com orgulho. Em um dos camarotes, o arquiteto Fernando Miranda, 61 anos, seguia com atenção todas as escolas e tinha os sambas-enredo na ponta da língua. Ele esteve presente em todos os desfiles desde 1982, dois anos antes da inauguração da estrutura da Marquês de Sapucaí, e recorreu às memórias.
“O sambódromo trouxe organização ao desfile. Antigamente, tinha muito mais gente na pista, era uma confusão imensa nas laterais”, explica ele, apaixonado pela União da Ilha do Governador. Fernando, que já liderou a Ala do Balanço da escola insulana, conta que o Carnaval é parte importante de sua trajetória.
“A avenida faz parte da história da minha família. Meus filhos me acompanham há 20 anos. Desde os 12, 13 anos desfilam comigo. Eu tinha 19 anos na minha primeira vez. O fanatismo é tão grande que minha filha e eu passamos aqui na época da reforma e pegamos uma parte do concreto da passarela que foi demolida e até hoje está guardada lá em casa.”

Além do amor irrestrito de muitos foliões, o grande presente que a Passarela Professor Darcy Ribeiro recebeu em 2024 foi um novo –e já polêmico– sistema de iluminação, que permite aos carnavalescos usar a luz como elemento cenográfico durante a passagem das agremiações. Após testes no Carnaval passado, os novos holofotes entraram oficialmente em funcionamento neste ano.
Controlados a partir de uma sala no setor 10, os 510 refletores espalhados pela avenida podem pulsar no ritmo da bateria, colorir toda a passarela de uma só vez e até mesmo iluminar apenas um único ponto do desfile. Algumas escolas, como a Grande Rio, que ficou em terceiro lugar, e a campeã, Viradouro, mostraram como a nova ferramenta pode ser utilizada para gerar interessantes efeitos visuais. A escola de Caxias, campeã em 2022, distribuiu ao público pulseiras a la Coldplay que acendiam nas arquibancadas quando a luz da avenida se apagava. Já a agremiação de Niterói investiu em alegorias e fantasias em neon, que ganhavam um novo e brilhante visual no escuro. A Portela de Paulo Barros, por outro lado, sofreu críticas por exagerar nos efeitos e deixar seu casal de mestre-sala e porta-bandeira na penumbra bem na frente dos jurados.
Em um universo onde inovação e tradição convivem meio que a contragosto, qualquer pequena novidade vira uma enorme discussão. Os saudosistas reclamam que o jogo entre claro e escuro impede a visualização correta das agremiações por parte do júri, enquanto os inventores da folia já enxergam novos horizontes para contar suas histórias. Depois do desfile de 2024, ficou evidente que a nova ferramenta veio para ficar. A tecnologia apresenta possibilidades interessantes, que tendem a ser aperfeiçoadas ao longo dos anos. Se a Sapucaí é o maior palco do mundo, nada mais justo do que o desenho de iluminação fazer parte do show –como, aliás, acontece nas grandes apresentações dos ícones do pop global e em peças teatrais.
A polêmica não é um caso isolado na história da passarela do samba. A Marquês de Sapucaí já começou marcada por debates acalorados. Quando o então governador fluminense Leonel Brizola (1922-2004) encomendou ao arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) um projeto para uma passarela do samba, boa parte da opinião pública se queixou. Muitos não viam motivo para gastar somas vultosas de dinheiro em uma obra que iria tirar o Carnaval das tradicionais avenidas do centro do Rio de Janeiro. No entanto, a escolha do local foi uma espécie de retorno à mítica região da Praça 11, onde o samba carioca nasceu sob as bênçãos de Tia Ciata e onde a primeira escola de samba –a Deixa Falar– fez o seu primeiro desfile, em 1929.

A obra foi concluída em impressionantes 156 dias de trabalho por cerca de 2,5 mil operários, que se revezavam em turnos durante as 24 horas do dia para seguir com o trabalho. Aos 19 anos, o fotógrafo Renato Velasco recebeu uma tarefa inédita dos chefes do estúdio onde trabalhava: registrar a evolução da construção da passarela do samba, no Rio (as fotos em preto e branco que ilustram essas páginas são dele, inclusive). Os contratantes eram engenheiros, que queriam documentar cada passo da obra em seus relatórios. Por quatro meses, o jovem fotógrafo passava um expediente inteiro debaixo do sol e da chuva, com suas câmeras penduradas nos ombros e um cantil –seu parceiro inseparável após perder 10 quilos e sofrer uma desidratação pelo trabalho intenso. Renato ficou próximo dos operários e mestres de obra. Comia no mesmo refeitório, ouvindo as histórias de muitos deles, que chegaram ao Rio em busca de melhores oportunidades de trabalho. Ele também testemunhou acidentes, mortes na obra e quase foi vítima da precariedade de segurança no local. “As pessoas desmaiavam e caíam de alturas imensas pelo calor. Passei esses sufocos. Era muita lama e precisava me enfiar nos buracos para fotografar várias partes da obra”, conta ele.
Apesar da correria, tudo ficou pronto para o Carnaval de 1984. Mangueirense, Renato se emocionou ao fotografar o primeiro desfile na Sapucaí: ele testemunhou o retorno histórico da verde e rosa, que chegou à Praça da Apoteose, deu meia-volta e entrou de novo na avenida. A paixão pelo Carnaval até fez o fotógrafo deixar a câmera de lado para ajudar a agremiação. “Um carro da Mangueira bateu e parou a escola. Eles não conseguiam mais andar. O pessoal começou a pular da arquibancada para ajudar, porque o carro era muito pesado. E eu também fui! Fiz umas fotos e fui lá ajudar. Conseguimos tirar, e a escola passou.”
Acidentes com os carros alegóricos ainda fazem parte da realidade do sambódromo. Neste ano, uma mulher foi imprensada na grade do setor 1 por um veículo da Porto da Pedra que não conseguiu fazer a curva na esquina da avenida Presidente Vargas com a Marquês de Sapucaí. Ela sofreu ferimentos leves. Muitas vezes, as escolas precisam desengatar os carros para conseguir entrar na área de desfile.
Encarada por muitos como um “pesadelo logístico”, a passarela do samba convive com problemas antigos. As escolas que se concentram à esquerda do sambódromo têm que passar por baixo de um viaduto, que limita o tamanho das alegorias e faz com que os destaques precisem se agachar. O acesso às arquibancadas, que após as reformas de 2012 comportam 72.500 pessoas (quase a mesma capacidade do Maracanã), também segue difícil.
No entanto, quando tudo dá certo, os problemas desaparecem como em passe de mágica. A cada momento em que uma escola pisa na Sapucaí, o encantamento se estende por pelo menos 70 minutos. Nos últimos 40 anos, desfiles inspiradíssimos cruzaram os 700 metros de asfalto do sambódromo e entraram para a história. Ao que tudo indica, com novas ideias e problemas antigos, a Marquês de Sapucaí seguirá sendo o solo sagrado do Carnaval carioca ainda por muitas décadas.
[Esta reportagem foi publicada originalmente na edição #6 da Billboard Brasil. Adquira a sua aqui.]
